O traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, completa neste mês seu quinto ano consecutivo de cadeia desde que foi recapturado, ferido à bala, numa megaoperação militar em plena selva colombiana. O rei do narcotráfico no Brasil tem passado os últimos dias numa cela de 15 metros quadrados na carceragem da Polícia Federal em Brasília. Sem luxo e sob a vigilância cerrada que merece. Afinal, mesmo preso, ele continua a ser o maior criminoso do País. E não por acaso. ISTOÉ teve acesso a uma vasta documentação que mostra, por dentro, o funcionamento da pesada máquina de fazer dinheiro que Beira-Mar começou a montar em 1990. São 270 páginas que esmiúçam a vida financeira e particular do traficante, escancaram o modus operandi de sua quadrilha e comprovam a antiga suspeita de que o bandido fornecia armamentos e munições às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, em troca das toneladas de cocaína com que abastecia pontos-de-venda de droga espalhados pelo Brasil.

Os dois principais documentos são uma agenda e um caderno nos quais Beira-Mar anotava as suas operações num nível de detalhe surpreendente. Os papéis apreendidos pelo Exército colombiano no esconderijo do traficante foram repassados em seguida às autoridades brasileiras, que até hoje exploram as notas nas investigações sobre as atividades do narcotráfico.

Impressa em espanhol, a agenda registra as operações de Beira-Mar ao longo do ano 2000. Ele estava no auge. Contava com uma ampla malha de contatos no Brasil e, dentro da Colômbia, gozava da proteção das Farc. Foi preenchida de próprio punho pelo traficante no período em que esteve associado a Tomás Medina Caracas, o Negro Acácio, comandante da Frente 16 das Farc, que lhe deu refúgio num pedaço do território colombiano dominado pela guerrilha. Naquele tempo, o traficante era procurado pelas polícias do Brasil e dos Estados Unidos. As anotações apresentam um Beira-Mar cuidadoso com números, principalmente cifras. E elas são milionárias. Cada operação de remessa de drogas para o Brasil dava ao traficante lucros de centenas de milhares de dólares. O bandido anotava, uma a uma, suas despesas. Do aluguel de aviões para transporte dos fardos de cocaína até o pagamento aos soldados do tráfico, encarregados de fazer funcionar o esquema no destino da encomenda. O rigor era igual para as receitas. Na folha que remete ao dia 16 de junho, por exemplo, registrou o envio de 310 quilos de cocaína para São Paulo. No negócio, Beira-Mar produziu US$ 1.147.000. As despesas somaram US$ 175.500. Só na contratação de piloto e co-piloto para o vôo clandestino foram gastos US$ 30 mil.

A agenda é prova cabal da aliança entre Beira-Mar e as Farc. Uma de suas facetas mais impressionantes é a quantidade de armas e munições que Beira-Mar fazia chegar aos rincões da Amazônia colombiana, para entregar às Farc em troca da droga. Essas despesas eram contabilizadas à parte. No começo do ano 2000, ele encomendou para seus homens um megacarregamento: cinco granadas e mais 530 caixas de projéteis de calibres dos mais variados. Só para pistolas 9 milímetros eram 100 caixas. Em abril, o traficante “importou” para a Colômbia 250 pistolas, 30 fuzis e mais 800 caixas de balas. Em setembro, Beira-Mar anotou: “Pedido do senhor: 3 rifles 762, 15 rifles 22, 10 quilos de C4 com detonador, 50 caixas de 22 e 50 caixas de 762 longo.” Na verdade, as armas, as munições e o C4, um tipo de explosivo de uso militar, eram praticamente uma exigência do chefão das Farc à quadrilha de hóspedes brasileiros. Em outra passagem, Beira-Mar anota um recado que teria de dar a Jaime Amato, seu irmão de criação e braço direito. “Tem que vir alguma coisa para os homens aqui. Mande 10.000 mil (sic) de 9 mm.” E assim funcionava a cooperação: armas para lá, drogas para cá.

Junto com armas, os homens de Beira-Mar carregavam dinheiro vivo. Num dos episódios, o megatraficante chegou a ordenar que levassem até ele US$ 1 milhão. Os documentos revelam que parte do dinheiro era movimentada de banco para banco, sem o auxílio das mulas bem-remuneradas. Ao longo da agenda, há dezenas de contas bancárias em nome de parentes, amigos, advogados, comparsas e credores do bandido, de mercadinho a loja de material de construção. Ao lado de cada anotação, ele indicava os valores a serem repassados, tarefa que ficava a cargo de seus asseclas no lado brasileiro da fronteira. A maior parte das contas hoje está inativa. Mas isso não indica que o dinheiro acabou. Num trecho da agenda, Beira-Mar faz referência às Ilhas Cayman, paraíso fiscal onde a polícia suspeita que estejam guardados alguns milhões arrecadados pelo esquema. Há ainda referências a outros negócios do dono da agenda, como compras de gado, fazendas e aviões. Em 26 de dezembro, o traficante anotou o que queria ver numa das propriedades negociadas: “Galpão grande que dê para colocar no mínimo dois aviões, 1 lagoa grande para peixe e jet ski, 1 salão de jogos e sauna.” A preocupação com o tamanho do galpão não era em vão. As referências a negociações de aeronaves são várias. Os preços, a partir de US$ 130 mil. O dinheiro fácil servia também para burlar ainda mais a lei. O traficante registrou um episódio em que o avião de um comparsa foi apreendido e os pilotos, presos. Bastou o pagamento de R$ 120 mil para que fossem libertados em seguida. “Ele perdeu o avião, pagou a liberdade dos pilotos, mais advogados”, redigiu o organizado traficante. Ele só não registrou o nome do comparsa nem o de quem recebera a propina. Assim como não pôs seu nome verdadeiro na agenda. O que está lá, nas primeiras páginas do diário, é Raul Garcia, um dos vários codinomes que adotou na Colômbia.

Para a Polícia Federal, os papéis têm sido um extraordinário roteiro para reprimir o tráfico, pois desnudam a superestrutura montada por Beira-Mar para comandar a distribuição de cocaína no Brasil. Tudo foi planejado para despistar ao máximo a polícia e quem mais quisesse encontrá-lo. Os contatos com o Brasil eram feitos por telefone via satélite, que mudavam regularmente. Para driblar eventuais grampos, a ordem era não falar os números. Havia um código próprio. Num deles, a quadrilha tinha uma letra para cada algarismo, de zero a nove. Quando era preciso dizer um número de telefone ou uma freqüência de rádio, eles transformavam a seqüência numérica numa seqüência de letras. A parafernália contava ainda com antenas parabólicas e localizadores GPS, para facilitar a locomoção na floresta. Em meio aos mais de 150 nomes listados no diário de Beira-Mar, há pelo menos 200 números de telefone. Da Colômbia, ele mantinha contato direto com o Brasil. Falava com traficantes conhecidos do Rio. Caso de Elias Maluco, preso sob a acusação de ordenar a execução do jornalista Tim Lopes, em 2002. O traficante anotava previamente o que tinha de falar nos contatos, pontuados por ordens. “Ninguém pode levar mais de mil quilos, só com minha autorização”, diz uma delas. A conexão com sua terra natal ia mais além. Beira-Mar tinha linha direta com presídios. “Falar com Bangu 1”, anotou num lembrete.

Em plena selva, o traficante, nascido paupérrimo na Baixada Fluminense, tinha vida de rei. A situação era bem diferente da que ele enfrenta hoje, apertado numa cela com outros três presos e comendo quentinha. Na sexta-feira 7, almoçou arroz, feijão, carne, mandioca, chuchu e tomate. O diário, porém, revela uma antiga rotina de fausto. Mais de uma vez por mês, Beira-Mar repassava a seus homens do lado brasileiro uma lista de itens de consumo. Numa das vezes, ordenou que lhe levassem cinco garrafas de uísque 21 anos, dois pares de tênis Nike número 40 “de cor escura”, duas pochetes da mesma marca e um vidro de perfume Paloma Picasso, para uma das mulheres que o acompanhavam – entre elas sua namorada, Jacqueline Alcântara de Moraes. No mesmo farnel deveriam estar três canivetes suíços, três lanternas e farta munição para revólver calibre 38 e escopeta. Noutro alfarrábio, registrou camarão e mexilhão. O traficante chegou a pedir um relógio Versace. Quando não mandava levar direto a encomenda, pedia orçamento. “Ver preço relógio Gucci, pulseira de aço”, anotou. Outros pedidos incluíam ainda fitas de vídeo (uma delas, de ioga), bacalhau, feijoada, pasta de dente, sabonete, creme para o corpo e remédio para emagrecer. Junto a dois pares de halteres, quis certa vez uma corda com contador de pulos.

No Brasil, Beira-Mar tem condenações suficientes para passar o resto da vida no xadrez. O traficante é condenado, ainda, na Colômbia e nos Estados Unidos. Por aqui, sua periculosidade tem dado dor de cabeça ao governo. Em cinco anos, ele já foi transferido nove vezes. Quase sempre, por motivo de segurança. Trata-se, assim, do preso mais caro do Brasil: custa aos cofres públicos cerca de R$ 30 mil por mês. “O custo é até barato para garantir à sociedade que um bandido de primeira grandeza permaneça preso e com 100% de garantias de que não irá fugir”, opina o superintendente da PF no Distrito Federal, Daniel Sampaio.

“Mesmo atrás das grades, ele continua sendo um dos maiores traficantes do mundo”, afirma a policial civil Marina Maggessi, inspetora da Delegacia de Repressão a Entorpecentes do Rio. Dentro de três meses, Beira-Mar estará viajando de novo. Irá para o primeiro presídio federal de segurança máxima, a ser inaugurado em Campo Grande (MS). Segundo o governo, sua estadia definitiva. Marina acha que a proximidade com a fronteira pode ser útil ao criminoso. “Ele tem uma equipe muito fiel no Paraguai e também na Colômbia. Seu poder continua o mesmo.” Uma das atuais missões da Polícia Federal é localizar as contas bancárias do traficante no Exterior para quebrar o esquema financeiro que ele deixou para seus sucessores. Os documentos apreendidos na selva ainda são a melhor pista.