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Esse é o relatório do marechal de campo e inspetor M. de Keralio, sobre um dos estudantes da Escola Militar de Brienne-Le Château, em Aube, no norte da França: “M. de Buonaparte (Napoléon), nascido em 15 de agosto, medindo 1,47 metro, boa constituição, excelente saúde, tipo alegre. Terminou o quarto ano. Honesto e generoso, sua conduta é normal. Distingue-se por sua aplicação em matemática; passável em história e geografia; fraco nos exercícios de declamação. Será um excelente marinheiro. Mérito para ingressar na Escola de Paris”. Data: 1783. O inspetor equivocou-se em sua avaliação, mas estava certo em relação ao desempenho escolar do futuro imperador da França, na época com 14 anos, especialmente a respeito das aulas de geografia. O homem que ampliaria as fronteiras de seu país, que comandaria batalhas em condições adversas de clima e de temperatura e que teria sob o seu poder boa parte da Europa não gostava muito do estudo de países, relevos e cursos d’água. Inclusive usava o seu atlas das nações para se dedicar a garatujas muito bem elaboradas: fazia retratos de seus professores, reproduções de objetos e ilustrações movidas por fantasias de evasão. Esse famoso volume cartográfico de Napoleão (1769- 1821) encontra-se nos Arquivos Nacionais da França, em Paris, e foi registrado com exclusividade pela fotógrafa Julie Malaure enquanto estava sendo restaurado. É um pesado livro com capa de couro e detalhes em ouro, em cuja página de abertura se lê: “Novo Atlas portátil, destinado à instrução de jovens (…)”. A edição parisiense é datada de 1778.

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DOCUMENTO REVELADOR
A página de abertura do atlas, com manchas de tinta. O livro, de 1783, foi utilizado por Napoleão na época em que era bolsista do rei em uma escola militar

O que salta aos olhos nessas obras improvisadas do jovem Napoleão é o traço expressivo e zombeteiro, contrário ao temperamento “generoso, de conduta normal”. Sabe-se que, além das disciplinas comuns de um cadete, Napoleão estudou desenho. Mas o que se vê é uma opção clara por um tipo de arte popular naquela época: a caricatura. Ele próprio seria vítima dessa forma crítica de expressão quando tomou o poder, mas por ora tinha seus alvos de adolescente rebelde. Em um desenho de linhas ágeis, ele retrata um idoso usando toca, nomeado Crochard. É a imagem que fazemos de “O Avarento”, de Molière. Outra margem do seu atlas é ocupada por uma série de rostos cujos queixos e narizes desproporcionais estão distantes de qualquer ideia de virtude. Lembram personagens de Fellini. Mais um desenho revela um professor usando peruca Luís XVI sendo atacado por um aluno que se dependura em seu cabelo. Sabe-se que Napoleão, de origem córsega e que, portanto, tinha como língua pátria o italiano, não gostava das aulas de francês e demonstrava dificuldade com a gramática. Seus colegas até faziam chacota com o fato de ele pronunciar o seu nome como Napoglioné. Ele implicava também com o ensino do latim. Natural, portanto, que descontasse nos professores. Mas ao subir na hierarquia, foi generoso com a maior parte deles. O professor de matemática, por exemplo, Jean-Baptiste Patrault, que, ciente de seu talento para a disciplina, o incentivou a se enveredar pelo cálculo integral e diferencial, foi mais tarde agraciado com o cargo de secretário particular na campanha da Itália. Napoleão ingressou na Escola Militar de Brienne-Le Château em 1779, graças a uma bolsa concedida pelo rei Luís XVI. Tinha nove anos e permaneceu na instituição por mais cinco. Encerrado com 120 crianças, metade de família nobre e metade sem muitos recursos, ele fazia parte do segundo grupo. Os melhores alunos eram destinados à artilharia ou à marinha, os medíocres à infantaria, e os incapazes, devolvidos à família. Além da matemática (“Tudo o que não for fundado em bases físicas e matemáticas deveria ser proscrito pela razão”, diria mais tarde), ele logo chamou a atenção pelas estratégias militares. Num inverno rigoroso, demonstrou a sua capacidade de comandar equipes em uma batalha de bolas de neve que durou semanas e se tornou histórica. Mas era uma vida dura. Durante os cinco anos, os candidatos às tropas reais não podiam sequer pôr os pés fora da escola e recebiam a visita dos pais apenas uma vez. A existência reclusa talvez justifique o desenho que Napoleão fez de um balão, soprado por nuvens de forma humana. Essa imagem representativa do desejo de evadir-se foi feita nas margens do mapa da Suécia.

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EXPRESSÃO Além de caricaturas (à esq. e abaixo), Napoleão desenhava dirigíveis

 

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