Um rapaz magro, alto e vestindo uma camisa estampada com cachorrinhos dálmatas bate à porta do artista plástico Farnese de Andrade (1926-1996), no Rio Comprido, no centro do Rio de Janeiro. Ao observar Charles Cosac, o artista mal consegue disfarçar seu espanto: “Se fosse eu com essa roupa, jogavam pedras. Mas, como é um jovem como você, está bonito.” Pode-se dizer que a indumentária foi a única concepção estética que eles não compartilharam, desde quando se conheceram, em 1994. Farnese sempre vestiu roupas comuns e Cosac, 40 anos, historiador e editor da prestigiada Cosacnaify, continua com savoir-faire para envergar estampas tecnicamente duvidosas com a maior elegância. No Rio para a abertura na terça-feira 1º da exposição Farnese: objetos, da qual é curador, ele caminhava pelo Centro Cultural Banco do Brasil metido numa camisa comprida até abaixo dos joelhos ao estilo seminarista. Um fraque inglês não lhe daria maior nobreza. No vernissage, causou frisson ao usar um anel do tipo soco inglês todo em ouro e brilhantes e brindou os convidados com uma visita-guiada pelas 130 obras reunidas na mostra, entre elas Oratório de mulher, Hiroshima, Homenagem a Morandi e várias Anunciação. É a maior exposição já realizada sobre o artista.

O primeiro encontro entre os dois se deu quando o editor tinha 30 anos e o artista, 68. A diferença de idade não foi obstáculo para a amizade que os uniu. Ambos tinham vários pontos em comum: eram mineiros, tinham personalidade bipolar (alternando depressão e euforia), amavam as artes. A intensa convivência ao longo de dois anos incluía longas conversas na casa do artista – com, não raro, Cosac deitado no chão da cozinha. Acometido, na época, por uma grave enfermidade na coluna, o editor só vencia as dores estatelado em superfície lisa e reta, o que era tratado com normalidade pelo amigo. Por outro lado, quando Farnese mostrava uma obra, era a vez de o editor lidar com as limitações.
“Ele gostava de mostrar seu trabalho, mas não podia dar opiniões. Fiz isso certa vez e ele disse: “Esse direito eu não lhe dou.’” A amizade é descrita por Cosac como “uma enorme afinidade de alma, uma identidade profunda”. Farnese era homossexual, mas seu interesse por Cosac não passava pelo contato físico. O editor, por sua vez, cultivou um “amor platônico” em relação ao mestre. “Ter entrado em seu ateliê foi uma das coisas mais extraordinárias que me aconteceram”, diz. Se pudesse ver o que o editor tem feito por sua obra, certamente Farnese diria que a recíproca é verdadeira.   
   

Resgate – Quatro anos após a morte do artista, devido a enfisema pulmonar, a Cosacnaify lançou o livro Farnese de Andrade, luxuosa edição que inclui o DVD do filme Farnese, dirigido pelo crítico de arte Olívio Tavares de Araújo em 1970. A exposição atual é resultado de um garimpo entre colecionadores particulares, familiares e museus. O foco são apenas os objetos, excluindo-se gravuras, desenhos e pinturas. “Maliciosamente, não fiz uma retrospectiva. Se fizesse, acho que o estaria condenando a décadas de abandono. O que espero é que essa exposição seja o reinício do resgate do trabalho dele.” Embora tenha recebido vários prêmios no Brasil e fora dele, Farnese nunca teve o mesmo reconhecimento público de contemporâneos como Lygia Clark ou Amilcar de Castro. “Ele não estava na mídia nem era chamado para exposições não por esquecimento, mas, acredito, por dificuldades logísticas. Não estava interessado, não facilitava nem buscava isso”, explica Cosac, que rechaça o mito de que o artista teria temperamento irascível. Entre as razões do exílio ele cita o “fascismo do concretismo” e lembra do amigo assustado ao dizer que “tinha a impressão de que, se não fosse concreto, não era considerado obra de arte”. Tentar encarcerá-lo em movimentos seria um erro. “Em momento nenhum ele se curvou aos postulados do simbolismo, surrealismo e qualquer outro ismo”, diz.

A exposição reúne oratórios, gavetas, armários, gamelas, todos em um intrigante, aflitivo, fantástico e mágico universo de assemblage, técnica que significa a união de um ou mais elementos. No caso, ex-votos, anjos incinerados, tripa de boneco, fotografias antigas (inclusive dele e de sua família), destroços encontrados em praias, lixo, imagens sacras, cabeças de bonecas de porcelana compradas em antiquários. Uma das salas é dedicada apenas às obras em resina. O fato de Farnese ser mineiro, nascido em Araguari, explica um pouco a presença da religiosidade e das misturas sacras e pagãs na mesma obra, além da vocação quase agrária de se servir dos espaços na hora de “plantar” arte. Entre seus admiradores estão o secretário Municipal de Cultura de São Paulo, Emanoel Araújo, que possui duas peças, e o ator Sérgio Britto, dono de um quadro intitulado A bunda. Segundo o ator, não se deve tentar explicar o trabalho de Farnese. “É um criador sem medidas e deixou que a complexidade se espalhasse na arte”, afirma. Embora sua obra seja quase toda autobiográfica – incluindo as tragédias pessoais como a perda de dois irmãos pequenos afogados numa enchente – e repleta de referências à morte e à solidão, ela não é teórica. Como diz Cosac, “é fácil gostar e entender Farnese”. Por mais absurdo que possa parecer, é verdade.