Luciana Vendramini vai vomitar. Uma semana sem querer comer, vômito auto-induzido sete vezes por dia “na ilusão de dar alívio à loucura”. Dedo na garganta. Banheiro de seu apartamento em São Paulo. Passado recente. Corte para o presente. Luciana Vendramini encena que vai vomitar. Fundo de um poço de seis metros de profundidade. Luciana Vendramini se arrasta
no chão. A platéia hipnotizada pela força de sua interpretação segue os seus movimentos na peça 4.48 psicose.

Com o nome de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), a enfermidade mental chegou à cabeça de Luciana Vendramini na sua vida real. Com o nome de 4.48 psicose, a enfermidade mental chegou às mãos de Luciana Vendramini na sua vida de atriz. A enfermidade real e a enfermidade fictícia desembarcaram inesperadamente em seu mundo – doente, é claro, ela nunca quis ficar; quanto ao texto teatral, quatro atrizes haviam passado por ele, mas não conseguiram dar conta do recado. Aí o texto, para o bem do texto, chegou a Luciana. Na vida real, o TOC a mergulhou no poço sem fundo do inferno dos transtornos psíquicos – e ela emergiu mais forte do que nunca: “Aprendi a maravilha de ter a capacidade de discernimento.” No teatro, 4.48 psicose a fez descer no poço de um palco, mas também desse inferno ela deu conta com um eletrizante realismo de interpretação que (as muito normais que desculpem) só as “loucas” possuem. Com a palavra, Luciana Vendramini, 32 anos:

ISTOÉ – Você teve TOC. O que é isso?
Luciana –
É o inferno, só eu sei o que passei. É uma enfermidade psiquiátrica. Para deixar de ter comportamentos repetitivos, eu tinha de fechar ciclos mentais. Só que os ciclos se abriam cada vez mais, a doença se agravava.

ISTOÉ – Quando se manifestou pela primeira vez?
Luciana –
Eu tinha 13 anos e tive uma excessiva noção corpórea de mim mesma. Ficava olhando a minha pele e dizendo: essa é a minha pele. Mas foi aos 19 anos que os sinais foram mais claros: ao passar por uma porta eu tinha de ir e vir diversas vezes até passar de vez.

ISTOÉ – Quais os piores momentos?
Luciana –
Fiquei quatro anos sem sair de casa. Foi um inferno, morte
em vida. Se na minha mente se abrisse o ciclo de que para desligar a água quente do chuveiro eu tinha de ouvir o barulho de um lápis caindo, enquanto não ouvisse mentalmente esse barulho eu não fechava a torneira. Ninguém conseguia me tirar dali. Se alguém tentasse à força, eu ficava histérica. Certa vez fiquei dez horas sob a água, queimei o meu corpo. Chegava a desmaiar. Minha irmã, minha querida irmã, ficava sentada no vaso sanitário fechado, cuidando como podia de mim. Eu
não aceitava médicos nem medicamentos. Se eu achasse que algo na tevê era para o mal, eu permanecia diante dela até surgir algo que eu achasse que fechava o ciclo para o bem. Ficava 12 horas estática. Quando esse ciclo se fechava, abria-se outro. Meu Deus, como sofri.
Na minha casa ficamos três anos sem ligar a tevê. Em restaurantes,
eu sentava e levantava 100 vezes seguidas, até me sentar de vez à mesa. Dormia na garagem, não conseguia subir ao meu apartamento porque os ciclos mentais iam se abrindo. Eu tinha problemas com a cor azul. Se visse táxi com algum detalhe azul, dormia na garagem.
Cheguei a pesar 32 quilos. Fui internada.

ISTOÉ – Saiu melhor da internação?
Luciana –
Não. Eu me recusava a tomar os medicamentos, brigava com os remédios e isso me prejudicava. Não dá para sair da enfermidade sem aceitar a medicação.

ISTOÉ – O que você tomou?
Luciana –
Sertralina (antidepressivo) e clorazepam (ansiolítico). Hoje, só tomo cloridrato de clomipramina (antidepressivo).

ISTOÉ – E sua família?
Luciana –
Como toda família que tenha um enfermo mental, meus pais demoraram para entender. Um chorava num canto, outro brigava em outro canto, era pior para mim.

ISTOÉ – Você agredia?
Luciana –
Ficava histérica quando tentavam colocar remédio à força na minha boca.

ISTOÉ – Já sentiu vontade séria de matar?
Luciana –
Nunca.

ISTOÉ – Como você está hoje?
Luciana –
Estou ótima. E agora ajudo pessoas que têm TOC ou outras enfermidades, ajudo até pessoas que sentem mesmo vontade de matar.

O texto derradeiro de Sarah Kane

A excelente 4.48 psicose cumpre temporada em São Paulo e segue para Rio de Janeiro e Curitiba onde deve participar do Festival de Teatro (o terceiro mais importante do mundo, atrás dos festivais de Edimburgo e Avignon). É o último texto da escritora Sarah Kane (foto), nome marcante da dramaturgia inglesa dos anos 90 – ela o escreveu pouco antes de se suicidar em 1999. A direção geral de Nélson de Sá e a direção de arte e fotografia de Elaine Cesar e Lenise Pinheiro parecem ter sido criadas ao mesmo tempo que Sarah escrevia, tal a sincronia com o texto (na angústia e na dor, mas também na esperança). Os atores Luciana Vendramini e Luiz Päetow, pela força da interpretação, se confundem com psicóticos de verdade: mérito profissional deles. Destaque para a cena de eletroconvulsoterapia (tratamento com choque elétrico) e para o momento em que se anuncia o que talvez a suicida Sarah tenha tentado dizer ao longo de sua vida: “Todo suicida tem o desejo de se matar, mas não quer morrer.”