A bailarina mais famosa do Brasil anuncia que vai parar após 35 anos de carreira e conta como a dança a ajudou a enfrentar a morte de dois maridos

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SACRIFÍCIO
"Sinto muitas dores às vezes, mas não posso viver tomando
relaxante muscular. Só tomo na véspera de espetáculo"
, diz

Enquanto na canção “Ciranda da Bailarina”, de Edu Lobo e Chico Buarque, a artista escapa dos defeitos comuns aos humanos, na vida real a perfeição vista nos palcos cobra seu preço. A primeira-dama do balé clássico brasileiro, a carioca Ana Botafogo, é um exemplo disso. A delicadeza dos passos e gestos da principal estrela do Theatro Municipal do Rio de Janeiro é fruto de exercícios quase diários, que às vezes precisam ser complementados com fisioterapia e até o auxílio de analgésicos para suportar a dor que a dedicação às sapatilhas exige. Por ter vencido essas limitações do corpo e estar em ótima forma, ela acredita que, aos 54 anos, chegou o momento de parar – Ana quer encerrar a carreira em forma. Ao longo de 35 anos, encenou os principais papéis do repertório clássico, apresentou-se em todo o Brasil e nos mais importantes palcos da Europa e dos EUA, além de ter formado par com astros como o americano Fernando Bujones e o argentino Julio Bocca. Mas continuará inseparável da dança. Planeja, para o futuro, formar novos talentos.

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"Um dos motes da minha carreira foi ter tentado popularizar o balé. Dancei
muito fora do teatro, muita MPB. Até no Sambódromo dancei samba de sapatilha"

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"O Gianecchini tem sido um exemplo de força, mas acho que ele devia
dar menos entrevistas nesse momento e ser menos incomodado"

ISTOÉ

A sra. já pensou em parar de dançar?
 

Ana Botafogo

Penso bastante. Talvez no fim do ano que vem. Porque eu quero acabar bem, dançando. Digo que meu ídolo é o Pelé, que terminou a carreira jogando bem. Quero dizer que posso continuar dançando, mas não vou. Vou pendurar as sapatilhas. Quero parar bem e feliz. Adoraria ainda poder costurar todos os meus sonhos, como conseguir fazer um grande espetáculo com todos do Theatro Municipal. Também gostaria de terminar essa turnê (“Marguerite e Armand”) em mais algumas cidades brasileiras. Não há ainda uma data certa para eu parar, mas está cada vez mais próximo.
 

ISTOÉ

O que a sra. pretende fazer depois que pendurar as sapatilhas?
 

Ana Botafogo

Estarei sempre envolvida com dança. Adoraria poder ajudar os jovens bailarinos a construir seus sonhos, seja dando oportunidade a algum talento, seja transmitindo conhecimento e ensaiando jovens. Quero transmitir toda a experiência que adquiri nos papéis que fiz. Outro projeto seria dirigir grandes balés.
 

ISTOÉ

Qual é a programação para encerrar a carreira? 

Ana Botafogo

Tenho um convite para o Teatro Colón (de Buenos Aires, na Argentina) para fazer um espetáculo com eles. Também vou participar do festival de Joinville (SC), que está completando 30 anos. Aqui (no Rio) é possível que participe da primeira temporada do Theatro Municipal, em abril. O que eu adoraria é ter um espetáculo no ano que vem com coro, orquestra e balé do Municipal. Só assim consideraria que fechei minha carreira com chave de ouro. Outro projeto que eu tenho, que está sendo coordenado pelo meu pai, é um livro contando toda a minha trajetória. Está ficando muito bom, completo e o ideal seria também lançá-lo no ano que vem.  

ISTOÉ

Depois de 35 anos de carreira, como avalia a opção de ter ficado no Brasil?
 

Ana Botafogo

Não me arrependo nada de ter ficado. Minha carreira começou fora do Brasil. Tive um princípio muito bom porque aprendi como funcionava uma companhia internacional, e claro que me questionei muito se deveria continuar na Europa. É muito bom ter um lar. É muito comum uma bailarina ficar uns dois anos numa companhia e depois pular para outra e não criar uma base. Achei que foi uma decisão acertada ter ficado porque eu pude ter não só um lar, uma casa, de onde eu sempre saía para os meus convites internacionais, como pude criar um público. Quando a gente pula muito de uma companhia para outra, trabalha com coreógrafos diferentes, mas deixa de ter uma continuidade na carreira. O que eu consegui ao longo desses 35 anos foi exatamente criar uma base e hoje em dia tenho um público que me segue fielmente.  

ISTOÉ

E financeiramente também compensa?
 

Ana Botafogo

Financeiramente, não. Há companhias que pagam muito melhor. Aqui nós somos funcionários públicos. Há 11 anos que não recebemos aumento. Mas eu tive uma carreira na qual, além do Theatro Municipal, pude dançar fora quando não estava diretamente envolvida com ele. Não posso nem reclamar que eu dancei pouco. Acho até que sou muito conhecida de tanto que eu dancei. Sobretudo nesses últimos anos, dancei muito pelo Brasil afora, o que nem sempre é possível com a estrutura do Municipal. Será que eu perdi? Talvez tenha deixado de encontrar alguns coreógrafos muito importantes da Europa e dos Estados Unidos, mas eu tive tantas coreografias montadas especialmente para mim aqui que eu acho que o prazer de dançar e de estar em cena foi plenamente suprido nesses anos. 

ISTOÉ

Que conselhos daria a jovens bailarinos? 

Ana Botafogo

Nunca digo vá para o Exterior que é melhor porque, hoje em dia, nós temos uma estrutura melhor, com grandes festivais de dança, companhias maiores e até um melhor desenvolvimento do balé e da técnica. Há companhias e bailarinos maravilhosos no País. Clássicos, só temos no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas o balé cresceu muito. Há excelentes bailarinos brasileiros que estão fora do País por falta de oportunidades aqui. O meu sonho é um dia poder reunir esses bailarinos e mostrar para o público brasileiro como nós temos talentos que os brasileiros não conhecem. Eu os estimulo a fazer concursos fora, mas o ideal é que todos estivessem aqui para termos uma excelência cada vez maior de balé no Brasil.
 

ISTOÉ

O que está faltando para o Brasil aproveitar melhor seus talentos na dança?
 

Ana Botafogo

Não gosto muito de cobrar tanto apoio do governo, porque nós precisamos de muita coisa, como educação, diminuir o analfabetismo, etc. Acho que o governo deve incentivar as empresas e os próprios indivíduos a investir em cultura. O Brasil é gigantesco, há milhares de pessoas estudando dança e não podemos nos restringir a dois grandes centros. Contamos nos dedos o número de companhias. Na Alemanha, por exemplo, todas as cidades grandes e médias têm seu corpo de baile e por isso temos muitos brasileiros por lá.
 

ISTOÉ

Há falta de formação de público para a dança? 

Ana Botafogo

No Rio, a cada temporada no Municipal, tentamos formar plateia com espetáculos em escolas, eles são o público de amanhã. Um dos motes da minha carreira foi ter tentado popularizar o balé. Dancei muito fora do teatro para tentar atrair esse público para cá. Fizemos muitos espetáculos a R$ 1. Dancei muita música popular brasileira. Fui até o Sambódromo, dançar samba de sapatilha no Carnaval. Dessa forma, as pessoas ouvem a música popular, mas veem o que é balé também. É uma maneira de ser educada. A pessoa precisa entender o que é para gostar.
 

ISTOÉ

Há algum papel que a sra. ainda não tenha feito e que gostaria de fazer?
 

Ana Botafogo

Tinha a Dama das Camélias, que eu quis muito e acabei de realizar. Fiquei cinco anos planejando. Para comemorar os 35 anos, eu tinha que ter um título novo e acabei escolhendo “Marguerite e Armand”. Tem técnica e muito de interpretação. Era o momento de fazer isso. Claro que tem alguns balés que eu não fiz, mas dos grandes clássicos fiz todos. Estou bastante contente com o repertório que tive.
 

ISTOÉ

A dor é um problema que acompanha a carreira dos bailarinos. O que isso acarreta?
 

Ana Botafogo

É preciso ter uma disciplina absurda. Consciência de que é necessário fazer exercícios permanentemente. Às vezes, até fazer fisioterapia. Tenho um médico que me acompanha e aqui no teatro também temos um para atender os bailarinos. Dores qualquer bailarino tem, até os mais jovens. Nunca tive grandes machucados. Mas já torci pé, já tive tendinite, distensões, contraturas musculares de exagerar muito. Isso acarreta um desgaste no corpo.
 

ISTOÉ

Esse problema pode levar a algum tipo de vício?
 

Ana Botafogo

Isso eu não tenho. Tomo muito pouco relaxante muscular. Só tomo remédio na véspera de espetáculo. Primeiro para poder fazer efeito, segundo porque só uso quando preciso muito. Sinto muitas dores às vezes, mas não posso viver tomando relaxante. Acho que pode causar dependência, sim. Talvez pelo fato de ter evitado tudo isso esteja dançando até hoje.
 

ISTOÉ

A seleção para o Corpo de Baile é transparente? 

Ana Botafogo

É transparente e está cada vez mais rigorosa. Cada vez mais a exigência técnica é maior. Mas é uma seleção subjetiva, o que é complicado. Cada professor membro da banca vai olhar com sua análise pessoal. E bailarino não é máquina. Um excelente bailarino pode não estar bem e fazer um teste ruim, o que é uma pena, será analisado por aquele momento. Se a gente pudesse analisar esses bailarinos em cena, ver como se apresentam, talvez o resultado fosse um pouco diferente. 

ISTOÉ

Em breve, as favelas cariocas vão receber apresentação de bailarinos do Municipal. O que isso significa? 

Ana Botafogo

Gostaria muito de participar dessa iniciativa. Vejo com bons olhos a pacificação. O mais importante, para mim, é saber que pessoas de bem desses lugares passam a ter o direito de ir e vir. Já dancei para moradores de várias comunidades e sou madrinha do Dançando para Não Dançar, da Teresa Aguilar, que dá aula para crianças carentes. Há 15 anos, quando o projeto começou no Pavão-Pavãozinho (zona sul), teve que haver uma negociação com os grupos que tomavam conta da comunidade. A apresentação foi cercada de cuidados. Ninguém de fora pôde ir. Por isso, fico tão feliz em ver essas pessoas conquistando sua cidadania. 

ISTOÉ

A sra. tem intenção de entrar para a política ou de se filiar a algum partido?
 

Ana Botafogo

Não. Sou extremamente artista e não sei ser política. Até gosto de saber que há pessoas competentes defendendo a cultura, mas prefiro me voltar exclusivamente para os palcos. O que me motiva na atuação política é participar de campanhas para ajudar, por exemplo, o Inca (Instituto Nacional de Câncer). Sei que ajudo a dar visibilidade a essas iniciativas. 

ISTOÉ

Como a sra. enfrentou as perdas de dois maridos? Já superou?
 

Ana Botafogo

Falar em superação é difícil. Aprendemos a conviver com a nova situação. É muito difícil logo nos primeiros momentos. Perdemos o chão. Mas temos que continuar vivendo. Talvez minha carreira tenha sido tão longa porque mergulhei mais na dança. Nesses últimos dez anos em que sou viúva, mergulhei intensamente dentro da minha arte, porque é o que me dá prazer. Aprendi que essa é a minha vida, que é feita de momentos alegres e difíceis.  

ISTOÉ

A internet e as redes sociais aumentaram a exposição de pessoas públicas que passam por dramas pessoais. O que acha disso? 

Ana Botafogo

É muito delicada essa exposição. Quando eu passei pela primeira tragédia na minha vida (morte do marido Graham Bart, em 1988), não tinha internet. É bom receber carinho, mesmo de quem não é tão próximo. Mas temos que pensar na privacidade também. O (Reynaldo) Gianecchini tem sido um exemplo de força e acho importante ele visitar outros doentes, mas acho que ele devia dar menos entrevistas nesse momento e ser menos incomodado. O mesmo em relação ao (ex-presidente) Lula. Na doença, as pessoas precisam de mais reflexão e oração.