Na chegada, Nova York é um susto bom para Johny, sua mulher, Sarah, e as duas filhas, a introspectiva Christy e a espevitada Ariel. Imigrados ilegalmente da Irlanda, a família recebe com alegria infantil o primeiro impacto da movimentação frenética, dos luminosos e das figuras estranhamente metropolitanas da capital do mundo. Mal sabem eles que este é apenas o começo de um calvário urbano para quem quer tentar a felicidade do outro lado do oceano Atlântico, mas traz na bagagem precária o peso da penúria e dos fantasmas assustadores do passado. Sem dinheiro, vão morar num cortiço habitado por toda sorte de párias. Para os pais, é um pesadelo irreversível exteriormente disfarçado pela frieza do sangue irlandês. Para as crianças, especialmente Ariel, tudo é praticamente um circo – dos pombos que, sem-cerimônia, invadem o apartamento, aos vizinhos totalmente descentrados. Neste ambiente propício ao derretimento de relações, sejam elas familiares ou não, o diretor irlandês Jim Sheridan – autor de filmes com a densidade de Meu pé esquerdo e Em nome do pai – criou Terra dos sonhos (In America, Irlanda/Inglaterra, 2002), que tem estréia nacional na sexta-feira 6.

Com perspectivas nada otimistas, Johny ainda tem pela frente o dever de manter firmes os alicerces de sua família. Eles estão cada vez mais abalados pelo espectro da morte prematura de um filho, que sobrecarrega o casal de culpa, envolvendo as duas filhas de maneira indireta. Como quase todo adulto, eles não imaginam o quanto as crianças são capazes de perceber o desalinho familiar. O próprio Jim Sheridan viveu experiências semelhantes quando imigrou para Nova York. Tanto que chamou as filhas Naomi e Kirsten para co-assinar o roteiro com ele. Sheridan remexeu no seu baú de memórias, entre elas a dolorosa morte de seu irmão Frankie, a quem dedica este seu filme mais pessoal. Na sua história, Johny, interpretado com contenção pelo inglês Paddy Considine, precisa provar aos seus que é capaz de sustentá-los, que pode conseguir se colocar profissionalmente como ator. Mas primeiro ele necessita limpar a poeira de lembranças más, espantar as assombrações que tomam conta dele e da mulher, Sarah, personagem que deu a Samantha Morton a indicação do Oscar de melhor atriz.

Em meio à convulsão de um lar que tenta se estruturar num local onde a droga e a infelicidade deixam o ar ainda mais espesso, surge a figura de um homem hostil, que grita na esperança de afugentar seus demônios e, adoentado do corpo e da alma, se esconde do mundo. Paradoxalmente, é Mateo, papel de Djimon Hounsou – ator natural de Benin, África ocidental – quem vai traçar o elo entre dois mundos tão antagônicos, mas igualmente atormentados. As responsáveis pelo encontro quase improvável são as garotas vividas pelas irmãs Sarah Bolger, que faz a observadora Christy, e Emma, dona da graça, espontaneidade e agudeza de Ariel. As duas são as mais jovens promessas do cinema. No filme, elas e Hounsou, que concorre ao Oscar de melhor ator coadjuvante, incorporam a estranheza, a alegria e a perspicácia. São universos que se encontram para impulsionar crença, otimismo e até a magia de uma simples bala de limão.


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