Às voltas com a pré-produção de seu primeiro filme internacional, The constant gardener, que começa a ser rodado em março, Fernando Meirelles, diretor de Cidade de Deus, nem se lembrou de acompanhar o anúncio das indicações ao 76º Oscar na terça-feira 27. “Estava em reunião quando fui bombardeado com a notícia. Havia marcado umas 500 reuniões para esse dia e me esqueci totalmente. Achava que não havia a menor chance para um filme falado em português”, disse ele a ISTOÉ, por telefone, do escritório da Thin Man Productions, em Londres. “São categorias de gente que faz”, brincou o cineasta paulistano, ao comentar sua indicação ao Oscar de melhor diretor. Cidade de Deus também está indicado às categorias de melhor roteiro adaptado (Bráulio Mantovani), melhor fotografia (César Charlone) e melhor montagem (Daniel Rezende). Aos 48 anos e três filmes no currículo, Meirelles estará competindo com Peter Jackson, de O senhor dos anéis: o retorno do rei, que encabeça a lista dos favoritos, com 11 indicações; Peter Weir, de Mestre dos mares – o lado mais distante do mundo, dono de dez indicações; Gary Ross, de Seabiscuit – alma de herói, com sete; Clint Eastwood, de Sobre meninos e lobos, com seis; e Sofia Coppola, de Encontros e desencontros, com quatro. A entrega do Oscar acontecerá na noite de 29 de fevereiro, no auditório do Kodak Theater, em Hollywood.

Sem levar em conta as quatro indicações, em 1986, de O beijo da mulher aranha, de Hector Babenco, uma co-produção americana com elenco basicamente estrangeiro, é a primeira vez que o Brasil entra no páreo com os pesos pesados da indústria americana. E em quesitos técnicos, tradicionalmente tidos como entraves à afirmação internacional do cinema brasileiro. “O País começa a ser considerado um lugar onde existe cinema”, afirma Meirelles, cuja produtora, a O2 Filmes, só no ano passado orçou três produções em inglês, interessadas em instalar o set no Brasil por causa dos baixos custos de filmagem. Em Toronto, cuidando da produção de Dark water e colecionando os elogios feitos ao recente Diários de motocicleta, lançado no Festival do Filme de Sundance, o cineasta Walter Salles chama a atenção para o bom momento da produção cinematográfica nacional, que em 2003 arrebanhou 22 milhões de espectadores. “Essas indicações que transcendem o território do filme estrangeiro são a prova da vitalidade do cinema brasileiro, mas também do cinema latino-americano como um todo. O novo cinema argentino e o cinema mexicano também vivem uma ótima fase”, afirma Salles.

Uma das provas é a presença de 21 gramas, produção americana assinada pelo mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu, em duas importantes categorias. Naomi Watts, protagonista do forte drama, concorre ao Oscar de melhor atriz pelo papel de uma mulher em crise após a morte por atropelamento do marido e das duas filhas. Encarnando o torturado motorista, Benicio Del Toro tem grande chance de levar o Oscar de melhor ator coadjuvante. Para Meirelles, essa edição do Oscar mostra que algo está mudando na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Uma constatação é a ausência, na categoria de melhor atriz, da poderosa Nicole Kidman, estrela de Cold mountain, épico de Anthony Minghella, indicado a sete estatuetas, a maioria técnica.

Outro esnobado foi Russell Crowe, ótimo como o capitão da Marinha inglesa durante as guerras napoleônicas em Mestre dos mares, e Tom Cruise, astro do épico zen O último samurai, de Edward Zwick. Carandiru, de Babenco, indicado pelo Brasil para concorrer a melhor filme em língua estrangeira, também ficou de fora. Mas a pequena abertura da Academia não deve ser levada ao pé da letra. Embora não seja exatamente uma tradição reconhecer filmes mirabolantes, o Globo de Ouro, entregue no domingo 25, sinaliza que o campeão do ano deve ser a última parte da trilogia O senhor dos anéis, que, além de melhor filme e direção, concorre a um caminhão de prêmios técnicos. Também a julgar pelo Globo de Ouro, a briga entre os melhores atores deve ficar entre Bill Murray – na pele do ator americano vítima de tédio, jet leg e carência afetiva na Tóquio de Encontros e desencontros – e Sean Penn, extraordinário como o pai vingativo de Sobre meninos e lobos.

No caso de uma produção emergente como a brasileira, a simples presença de Cidade de Deus na maior festa do cinema já pode ser considerada uma vitória. O mérito, Meirelles reconhece, deve-se à teimosia e visão do americano Harvey Weinstein, chefão da produtora Miramax, detentora dos direitos de distribuição nos Estados Unidos. Inconformado com a não-indicação de Cidade de Deus ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira de 2003, Weinstein montou uma estratégia para fazer a saga urbana sobre o nascimento do narcotráfico no Rio de Janeiro concorrer como produção normal.

O sucesso do filme, um dos melhores já realizados no País, nos últimos anos, não deve ser atribuído apenas ao propagado lobby. Desde seu lançamento em Cannes, em 2002, vem provocando polêmica, mas, principalmente, colecionando prêmios, um total de 49. No final de 2003, entrou em mais de 30 listas de melhores do ano nos Estados Unidos, onde está em cartaz há 64 semanas, sob o título de City of God. No Brasil, foi visto por 3,3 milhões de espectadores, público que certamente terá um grande motivo para assistir à entrega do Oscar até o final.

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