O presidente George W. Bush nem esperou que as urnas iraquianas fossem abertas para proclamar vitória. O surpreendente comparecimento do eleitorado às seções de votação serviu de justificativa para a política americana no Oriente Médio. Quase 60% dos cidadãos votantes desafiaram as ameaças de banhos de sangue feitas por insurgentes para eleger 275 parlamentares para uma provisória Assembléia Nacional Legislativa. Mas este afã democrático não significa triunfo para os Estados Unidos. O fantasma do aiatolá Khomeini, líder da Revolução Islâmica do Irã morto em 1989, está rondando o Iraque, já que os maiores vencedores neste pleito foram os iranianos. Pegue-se o exemplo mais significativo: o grão-aiatolá Husaini Ali Sistani, autoridade máxima dos xiitas, grupo majoritário no Iraque. Foi ele quem, ainda no começo de 2004, insistiu nas diretas já para a escolha do Parlamento. Na época, a Autoridade Provisória da Coalizão, órgão americano no comando da ocupação no Iraque, queria escolher a dedo uma junta de governo para o país. A insistência do aiatolá acabou prevalecendo. E foram as ordens expressas pelo líder que conduziram a massa xiita às seções eleitorais em 30 de janeiro. Mas Sistani não pôde fazer o mesmo: ele nasceu no Irã e, por isso, não tem direito a voto.

Maioria xiita – De todo modo, o partido de Sistani, a Aliança Iraquiana Unida, fará maioria no Parlamento, dando representatividade proporcional aos xiitas, que formam 60% da população do Iraque. Como os legisladores vão escolher o presidente, dois vices e o primeiro-ministro, é natural que os seguidores do aiatolá levem o prêmio máximo deste quarteto do poder: o cargo de primeiro-ministro, que será quem mandará mais no país. O posto supostamente já tem até dono: o protegido do aiatolá Sistani, Abdul Aziz al-Hakim. O final das apurações dos votos de domingo 30 só deve acontecer entre os dias 9 e 14 deste mês. Mas já se sabe que a Frente do Curdistão – representando os curdos ao norte do território, que compõem 20% dos iraquianos – também deve abocanhar um bom punhado de assentos no Parlamento. Já os sunitas, que governaram o país desde a independência, nos anos 30, boicotaram o pleito. Os poucos que se arriscaram a enfrentar as urnas e a ira dos insurgentes não devem ser suficientes para lotar uma van blindada. Mesmo assim, fala-se na indicação de um destes sunitas à Presidência (com funções honorárias) ou à uma vice-presidência.

Os legisladores saídos das eleições vão escrever uma Constituição para o país. Ela será votada em outubro de 2005 e necessita da aprovação unânime das 19 províncias iraquianas. “Os xiitas sabem que para alcançar a normalidade constitucional precisam escrever uma Carta que não será vetada por uma das quatro províncias sunitas que compõem as 19 regiões do território nacional”, disse a ISTOÉ Lakhdar Brahimi, ex-enviado especial do secretário-geral da Organização das Nações Unidas ao Iraque. “Abdul Aziz al-Hakim me garantiu pessoalmente que as intenções de sua Aliança Iraquiana Unida não são as de escrever uma constituição teológica, sectária ou exclusivista. Nem a de se estabelecer um regime teocrático”, disse Brahimi. A conferir, já que promessas de campanha costumam ser esquecidas depois de contados os votos.

Ligações perigosas – Apesar de ser líder de xiitas iraquianos, Ali Sistani não apenas nasceu no Irã como passou longos anos no exílio naquele país. Seus contatos com os aiatolás de Teerã – principalmente os clérigos da linha-dura – são mais do que amigáveis. Foram os iranianos que deram apoio logístico e material a Sistani, tanto na era de Saddan Hussein quanto depois da ocupação americana. A influência do vizinho Irã é má notícia também para os curdos. Estes vão querer o máximo de autonomia para sua região rica em petróleo. Além disso, estão motivados a estender essas exigências aos territórios do Curdistão no Irã e na Turquia. Neste caso, o cenário mais provável será o de ampliação da guerra civil existente, até agora movida pelos insurgentes sunitas, com iranianos e turcos metendo seus bedelhos.

Assim, com iranianos aos abraços com Ali Sistani, além de todos os enroscos resultantes da formação do Parlamento e da insurreição, Bush não poderia
retirar suas tropas do país mesmo que assim desejasse. Ele, sabe-se, não quer isso, mas as pressões no front doméstico e a quase unanimidade iraquiana pela saída dos soldados americanos do território ganharam força depois das eleições. O presidente dos Estados Unidos está diante de um verdadeiro nó górdio – aquela laçada mítica, impossível de ser desfeita, mas que Alexandre, o Grande, maior estrategista da história, conseguiu desfazer. Só que Bush, claro, não tem nada do macedônio Alexandre.