O governo americano acaba de criar uma divisão no Departamento de Estado para combater o tráfico de pessoas. Sally Neumann, 30 anos, membro dessa nova instituição e autora do relatório anual sobre esse tema, veio ao Brasil pela primeira vez para o seminário “Violência contra a Mulher/Tráfico de Seres Humanos”, que aconteceu nos dias 22 e 23 de novembro em São Paulo. O evento teve início três dias antes do Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher. Depois de visitar o projeto Cravi, que assiste as vítimas da violência e recebe apoio de Washington, Sally concedeu a seguinte entrevista a ISTOÉ:

ISTOÉ – Por que o tráfico humano se tornou uma atividade que chega a gerar lucros de US$ 7 bilhões anuais?
Sally Neumann – É um bom negócio que, infelizmente, tem todas as probabilidades de crescer. Diferentemente da venda de drogas, uma mercadoria que pode ser comercializada apenas uma vez, as pessoas podem ser vendidas como força de trabalho inúmeras vezes. Com a globalização, ficou muito mais fácil viajar e passar por fronteiras antes fechadas. São facilidades das quais o crime organizado tira vantagens. Outro fator que contribui para o crescimento desse tráfico é a pobreza e a falta de alternativas de trabalho em alguns países, além da marginalização das mulheres. As catástrofes naturais, como furacões e enchentes, também provocam o tráfico de pessoas. Na Índia, famílias são separadas por causa de furacões e quem sofre as maiores consequências são as crianças, que acabam sendo vendidas para o sustento dos pais.

ISTOÉ – Como se pode combater o tráfico humano?
Sally – A primeira maneira é conscientizar as pessoas sobre esse tipo de problema. Para isso, o governo americano oferece cursos para a polícia, juízes, promotores, departamentos de imigração, para que compreendam esse tráfico. É necessário que se criem instituições nacionais e internacionais que ataquem a questão. Noventa e três países, incluindo o Brasil, já assinaram um documento da ONU que obriga os signatários a prover informações sobre o tráfico, tratar as vítimas como vítimas – e não como criminosos – e a repatriá-las. Os países ricos, para onde o tráfico se dirige preferencialmente, também são muito importantes nesta luta.

ISTOÉ – Como lidar com as máfias internacionais?
Sally – Um grupo do crime organizado pode ser formado com apenas três pessoas. E eles usam as próprias vítimas do tráfico para atrair outras pessoas. Frequentemente, em troca de liberdade, essas vítimas retornam às suas cidades de origem para angariar outros trabalhadores. E os iludem com histórias sedutoras de como poderiam se tornar ricos. Por isso, antes de mais nada, é preciso assistir as vítimas. Em várias partes do mundo, como na Alemanha, nos Bálcãs, a máfia russa é muito perigosa porque faz ameaças de morte e às vezes até mata os que resolvem denunciá-la. Isso aconteceu, por exemplo, em vários países do Leste Europeu. Daí a necessidade de haver abrigos secretos para as vítimas do tráfico humano e a possibilidade de elas permanecerem no país para onde foram transportadas. Nos EUA, uma lei foi aprovada no ano passado pelo Congresso estabelecendo que as vítimas têm o direito à residência, a trazer seus familiares e à proteção do Estado.

ISTOÉ – A Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta como uma das principais razões para o tráfico humano a necessidade de mão-de-obra nos países desenvolvidos.
Sally – A questão do tráfico humano está diretamente ligada à questão trabalhista. É por isso que, nos EUA, o Departamento de Justiça e o Departamento do Trabalho se uniram na luta contra o tráfico de pessoas. Foi criada uma linha telefônica para quem quiser denunciar esses casos, inclusive há intérpretes para os que não falam inglês. Mas é necessário diferenciar tráfico humano de imigração ilegal. Na fronteira do México com os EUA, por exemplo, há pessoas que pagam para ser transportadas clandestinamente para os EUA. Se você paga, seja onde for, para ter uma vida melhor e permanece livre no país que escolheu para viver, então isso não é tráfico. O tráfico começa quando a pessoa se torna prisioneira desses traficantes, que exigem dinheiro para libertar os trabalhadores, alegando que eles recebem moradia e alimentação. A imigração ilegal faz uma intersecção com o tráfico humano, que é baseado na intimidação e na violência. Por isso, é importante que todos os trabalhadores sejam protegidos pelas leis de seus países. Se há trabalhadores ilegais, sem documentação, os governos devem investigar a fundo e detectar se há alguém lucrando com essa situação, para onde vai o dinheiro do tráfico, em vez de simplesmente deportar essas pessoas.

ISTOÉ – Há muitos casos de tráfico de pessoas nos EUA?
Sally – Os EUA recebem cerca de 45 a 50 mil pessoas por ano oriundas do tráfico, vindas de todos os lugares. A maioria chega da Ásia, seguida pela América Latina e Leste Europeu. Há todos os tipos de tráfico: sexual, servidão laboral, etc. Em San Francisco, um indiano riquíssimo naturalizado americano comprou três menores indianas que realizavam tarefas domésticas e o serviam sexualmente. Uma das garotas morreu acidentalmente e só assim o caso veio à tona. Ele foi condenado a sete anos de prisão e obrigado a pagar US$ 2 milhões para cada família das vítimas. O governo congelou seus bens de US$ 16 milhões. Infelizmente, isso aconteceu pouco antes de ser instituída a prisão perpétua para esses crimes.

ISTOÉ – Com o aumento do tráfico, cresceu a venda de meninas?
Sally

– Nas crises econômicas, sempre há aumento do tráfico. Uma menina do Nepal, por exemplo, vale US$ 12. Em lugares onde há alta incidência de Aids, quanto mais nova a menina, melhor. Alguns pais não se importam em vender suas filhas porque precisam de dinheiro. Muitas são sequestradas e as famílias nunca mais as vêem.