Com a mão direita espalmada sobre o coração, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desabafou no seu gabinete, no Palácio do Planalto, na tarde da quarta-feira 21, para um cacique peemedebista: “A reforma ministerial está sendo muito doída.” O longo trauma, que começou em setembro passado, teve um epílogo nesta sexta-feira 23, horas antes da viagem do presidente para a Índia. Nascia o PMDB governista, mas as dores de Lula continuavam no lado petista do peito, que o presidente precisou sangrar para permitir o ajuste que vai dar mais vigor e musculatura à máquina da administração federal. Foram necessárias duas horas de conversa, olho no olho, para fornecer na quarta-feira o sofrido bilhete azul ao amigo José Graziano, ministro da Segurança Alimentar e Combate à Fome. Outro “parto” foi a demissão por telefone do ministro da Educação, Cristovam Buarque. Na sexta-feira 23, depois de muito penar, Lula comunicou ao ministro em Lisboa que precisava de seu cargo. Cristovam, que reassume seu lugar no Senado, ficou irritado. As substituições já foram definidas: Patrus Ananias (PT), o deputado federal mais votado da história de Minas Gerais (520 mil votos), vai para o Ministério do Desenvolvimento Social com a tarefa de unificar e agilizar a área social, assumindo os programas Fome Zero e Bolsa Família a partir da estrutura comandada por Benedita da Silva (PT-RJ), também demitida. “Vamos parar com essa história de superministro. Sou ministro igual aos outros”, pediu aos jornalistas, na véspera de sua sagração. Com cadeira garantida no núcleo duro do Planalto, Patrus deve compor, no social, a santíssima trindade petista completada pelos ministros Antônio Palocci na economia e José Dirceu na política. Para a Educação vai Tarso Genro, que deixa a coordenação do Conselho Econômico e Social.

Mas é o lado peemedebista da reforma que revela as repercussões mais fundas da decisão de Lula. Um novo pacto de poder entre o PT e o PMDB sinaliza os rumos da política e do País para este e outros governos, agora e nas próximas eleições. “Esta aliança dá ao governo Lula a capacidade de viabilizar seu projeto de esquerda”, acredita o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que troca a liderança do Governo na Câmara pelo novo Ministério da Coordenação Política. Ele agora é o encarregado de dividir com o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, a ponte entre o Planalto, os partidos e os parlamentares. “O pacto com o PMDB dá coerência administrativa e programática ao governo. Não é pacto de cúpula, nem restrito a Brasília. Ele se estende aos Estados e municípios e vai além de 2006. Nosso projeto com o PT não tem limites”, avisa o deputado federal Eunício Oliveira (PMDB-CE), que troca a liderança do partido na Câmara pelo Ministério das Comunicações.
“Um pacto com esta dimensão possibilita a execução de nossas políticas mais à esquerda, como a reforma agrária”, imagina o deputado federal Beto Albuquerque (PSB-RS), vice-líder governista. “Se o PT tem um projeto de poder a longo prazo, ele precisa fazer alianças. E não há melhor aliança do que com o PMDB”, comemora o presidente do partido, deputado Michel Temer (SP), que Lula gostaria de ver, a médio prazo, numa cadeira do Supremo Tribunal Federal.

Maior partido do Senado (20 cadeiras) e segunda maior bancada da Câmara (77 deputados), o PMDB aguardou pacientemente a sua vez. Ouviu muita conversa, poucas ofertas, sucessivos recuos, cenários diversos e inúmeras frustrações. Não era culpa do negociador, José Dirceu, mas pura esperteza do chefe, Lula. “Ele, como um velho negociador sindical, costuma esticar a corda ao máximo”, explica um amigo do presidente. A longa esticada de Lula lhe rendeu um aliado depurado. “O PMDB no início do governo trazia a marca do governo FHC, com Temer, Geddel (Vieira Lima) e (Eliseu) Padilha no comando. Agora, o novo PMDB tem o Renan (Calheiros) convertido, o Eunício fortalecido e o (José) Sarney consagrado pela convivência com Lula”, define um líder governista com trânsito pelo Planalto. A parceria PT-PMDB dá estabilidade não só a este governo, mas à própria sucessão. As chances de reeleição de Lula crescem com a aliança, que pode render um vice peemedebista na chapa da sucessão. “Se o PT e o PMDB se entendem agora, por que desfazer isso em 2006?”, pergunta Aldo Rebelo. O futuro ministro chegou a prever uma oposição muito forte com PFL, PSDB e PMDB unidos: “Mas, com o PMDB no governo, as dificuldades maiores serão da direita.”

Polêmica – Mas, para chegar à reeleição de Lula, o pacto com o PMDB passa por outras reeleições, como a de José Sarney (AP)
para presidente do Senado e a de João Paulo Cunha (PT-SP) para a da Câmara, que ainda são difíceis de ajustar. “Historicamente, o PT sempre viu reeleição como ranço de continuísmo que fracassou nas Assembléias Legislativas do País inteiro”, alerta o líder petista no Senado, Tião Viana (AC). “Definitivamente não creio que o governo se intrometerá na reeleição das Mesas do Congresso”, avisa. Entre os peemedebistas, existem muitas dúvidas e eleições à frente para serem enfrentadas antes de assumirem de vez a campanha pela reeleição de Lula. “Se o presidente for bem, a reeleição está garantida. Se for mal, nem o PL vai querer aliança com o governo”, adverte uma raposa do PMDB.

Apesar disso, o partido não recusou nada que veio do Planalto. Aceitou as Comunicações para Eunício Oliveira e topou, sem muxoxo, a Previdência para o senador Amir Lando (PMDB-RR). Na quinta-feira 22, Lula ainda tentou empurrar os Transportes para o PMDB, desde que os nomes fossem os de Eunício ou do senador Pedro Simon (RS). Eunício não topou e Simon não passa pela goela da nova cúpula peemedebista, apesar das repetidas declarações de penhor de Sarney e Renan pelo senador gaúcho. A oferta inesperada de Lula mostra que a bênção de “São Alencar” já não garantia a sobrevivência do ministro Anderson Adauto. Dias atrás, o vice-presidente José Alencar avisou a Lula: “Eu só queria que ele soubesse que lutei por ele. Mas não sou motivo para constranger a reforma”, disse, lavando as mãos. Adauto acabou ficando graças também à indicação do PMDB, já que o nome apresentado foi o de um senador que terá problemas em breve.

Num caso, pelo menos, o candidato peemedebista não esperou ser citado – e foi ao Planalto. O senador Hélio Costa (PMDB-MG) rasgou a fantasia diante de Lula para reivindicar as Comunicações, dizendo-se amparado pelo apoio das Organizações Globo, dos Diários Associadose do governador mineiro, Aécio Neves (PSDB). Lula repassou o problema: “Se o Eunício aceitar outro Ministério, eu te dou as Comunicações.”

A aliança costurada em Brasília não é tão pacífica nos Estados.Em São Paulo, onde o PMDB conseguiu uma inédita unidade entre Temer e o ex-governador Orestes Quércia, o pacto não desperta muitas emoções. “O PMDB deve ter candidato próprio a governador,
salvo um grande acordo com o PT”, diz Temer. Já no Rio Grande do Sul, onde PMDB e PT brigam, o pacto só existe com limites. “Eu não vou aceitar que os Correios, no Rio Grande, fiquem com o PMDB, que é oposição a nós”, avisa Beto Albuquerque, do PSB. No acordo do PMDB com o Planalto, as Comunicações vão em bloco para o partido – o que inclui os Correios. A reação da bancada gaúcha mostra que o problema pode se repetir em outros Estados. “A Ciência e Tecnologia é do PSB, mas as diretorias da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) ficaram todas com o PT”, lembra o deputado.

Na reforma, antes do PMDB o PT pensou em si mesmo para sobreviver. “Parecia um velório. O morto no caixão, a viúva chorando, aquele
clima. De repente, alguém vê o morto se mexer, a viúva desmaia,
os parentes se espantam, os amigos festejam, e acabam gritando milagre, milagre. Foi o que aconteceu com o Olívio Dutra”, compara
um interlocutor de Lula. Inspirado na ressurreição de Olívio na pasta das Cidades, embalado pela reação das bases mais radicais do PT, Ricardo Berzoini reagiu quando a Previdência entrou no rateio da reforma. Teve a ajuda do amigo Luiz Gushiken, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação. Aos 45 do segundo tempo, Berzoini foi deslocado para o Ministério do Trabalho no lugar de Jaques Wagner (PT-BA), que assume o Conselho de Desenvolvimento Econômico
e Social. Na mudança, a ex-senadora Emília Fernandes (PT-RS) também ficou fora. Para seu lugar na Secretaria de Política para as Mulheres vai a professora Nilcéa Freire, ex-reitora da UERJ.

No auge da boataria, Roberto Amaral lembrou que sua saída, junto  com Miro Teixeira (Comunicações) – que será líder do governo na
Câmara – e Benedita da Silva (Ação Social), privaria o Rio de Janeiro
de seus três ministros. Na posse de Haroldo Lima como diretor da  Agência Nacional de Petróleo no Rio, na segunda-feira 19, Amaral trombeteava a tese nos corredores. Amaral, eletrocutado no cargo pelo próprio partido, o PSB, ficou sonhando com uma régia compensação  – o posto de embaixador em Paris junto à Unesco. Lula pensou num prêmio mais singelo: na conversa de despedida, na quarta-feira 21, disse que manteria Amaral na comitiva que foi para a Índia na sexta-feira 23. Amaral agradeceu a chance de viajar como ex-ministro, despediu-se e desapareceu. Nem voltou ao Ministério.

Quem é quem

Patrus Ananias (Desenvolvimento Social)
O discreto ex-prefeito de Belo Horizonte (1993-1996) saiu do
cargo com 85% de aprovação. Seu forte na prefeitura foram as políticas na área social.

Aldo Rebelo (Coordenação Política)
Alagoano de Viçosa, 47 anos, o ex-líder do governo na Câmara já está no seu quarto mandato de deputado federal. Entrou para o PCdoB na ditadura, em 1976. Foi presidente da UNE em 1980.

Eduardo Campos (Ciência e Tecnologia)
Aos 38 anos, esse economista é o ministro mais novo. Neto e sucessor de Miguel Arraes, está em seu segundo mandato de deputado federal pelo PSB, partido do qual foi líder na Câmara. Na administração do avô, em Pernambuco, foi secretário de Governo e da Fazenda.

Tarso Genro (Educação)
Na visão do Planalto, o ex-prefeito de Porto Alegre é um homem de gestão. É pai da deputada federal Luciana Genro, expulsa recentemente do PT por seu comportamento considerado radical.

Amir Lando (Previdência)
Nascido em Santa Catarina, formou-se em direito no Rio Grande do Sul e está em seu segundo mandato de senador por Rondônia. Ganhou fama como relator da CPI do impeachment de Collor.

Nilcéa Freire (Política para as Mulheres)
Formada em medicina, assumiu a reitoria da UERJ em 2000, onde foi a responsável pela implantação do sistema de cotas para estudantes negros, na primeira iniciativa deste tipo no País.

 

Os saltos do sertanejo

O novo ministro das Comunicações, Eunício Oliveira, 51 anos, é um fenômeno político simétrico ao do próprio chefe, Luiz Inácio Lula da Silva. Como o presidente, nasceu numa cidade pobre do Nordeste. Como ele, migrou meninote para um centro maior. Como ele, estudou e trabalhou, casou-se e teve filhos. As qualidades natas de ambos, postas à prova no mesmo período histórico, forjaram políticos habilidosos.

Mas, tal qual uma imagem refletida no espelho, um tornou-se líder sindical. O outro, patronal. Um, pobre e protagonista. O outro, milionário e coadjuvante. Esse elo ao avesso é o mais forte da corrente política que passa a unir o gigante PMDB à coalizão governista a partir desta semana. Nos corredores do Palácio do Planalto é unânime a previsão de que o ministro Eunício, a cada votação, deve se tornar peça-chave no relacionamento da bancada federal do PMDB com o governo.

No longuíssimo processo em que se transformou a reforma ministerial, Lula sempre deixou claro que, do PMDB, Eunício era o único com vaga garantida em qualquer cenário que se traçasse. Tanto que o então líder na Câmara praticamente escolheu a pasta, enquanto o resto do partido entrou num xadrez político complicadíssimo com o PT. Em parte, o apreço presidencial se deve ao fato de Eunício ter largado o tucano José Serra no meio da eleição de 2002 para coordenar a campanha do petista José Airton ao governo do Ceará. E por ter conseguido que 70 dos 73 deputados do PMDB votassem com o governo na reforma da Previdência, no ano passado.

É uma liderança política emergente, mas tem passado consolidado como empresário. Saiu de casa – uma fazenda pequena na cidade
de Lavras da Mangabeira, no sertão cearense próximo à divisa
com a Paraíba – aos 13 anos contra a vontade do pai. Migrou para a capital, Fortaleza, e passou a morar na Casa do Estudante do Ceará. Vivia com uma mesada de 100 mil cruzeiros, suficiente para uma bisnaga e um ovo cozido. Moçoilo, empregou-se como auxiliar de escritório na fábrica de biscoitos Fortaleza. Ficou lá por oito anos. Evoluiu até gerente de vendas interestaduais. Seu primeiro pulo-do-gato foi conseguir pôr os biscoitos Fortaleza nas gôndolas baianas da rede de supermercados Paes Mendonça. Ganhou um Chevette zero-quilômetro como prêmio.

Nesse tempo, meados da década de 70, Eunício já criara
um bom círculo de amizades em Fortaleza. Tinha amigos na
diretoria do grupo Ultra, do empresário Clodomir Girão, e acabou
se transferindo para lá. Destacou-se a ponto de o patrão convidá-lo para ser sócio da Impal, empresa que adquirira havia pouco, em Brasília. “Era 1977 e eu nem sabia para que lado ficava Goiás. Mas vim”, conta. Encontrou a Impal em frangalhos. Convenceu um
gerente de banco a conceder-lhe empréstimo sem fiador. A empresa voltou a respirar. Militante do PMDB, conheceu Mônica, uma das filhas do então deputado Paes de Andrade (PMDB-CE). Casou-se com ela. Em 1981, venceu uma licitação na Câmara. O sogro mandou cancelar, para não ser acusado de favorecimento. Sem ter como explicar o episódio aos sócios de Fortaleza, Eunício deixou a Impal e associou-se à Dinâmica, prestadora de serviços de limpeza e conservação. Era tempo de terceirização e o dinheiro começou a entrar. Adquiriu a Fazenda Santa Mônica (GO), arrendou revendas de carro. Comprou a Confederal, empresa de vigilância. Com ela, abocanhou os principais contratos do governo do Distrito Federal. O menino sertanejo conheceu a fortuna, definitivamente.

Milionário, tornou-se presidente da Federação do Comércio de Brasília. Tomou gosto pela vida pública. Elegeu-se deputado federal em 1998. Doa o salário de deputado integralmente a um asilo de velhos de sua cidade natal. Hábil, ainda no primeiro mandato conseguiu ser nomeado vice-líder e passou a frequentar as reuniões decisivas da cúpula do partido, ligada ao presidente FHC. Até que, na eleição de 2002, se aliou ao PT e, reeleito deputado, deu seu terceiro grande pulo-do- gato. Estava preparado o caminho rumo ao Ministério.

Ugo Braga