O conflito no Afeganistão colocou em evidência imagens impactantes do sofrimento dos refugiados de guerra. No fundo, um drama antigo que faz parte do dia-a-dia de outras nações em guerra por motivos étnicos ou religiosos. A vida dos habitantes de países como Angola, Congo e Serra Leoa, por exemplo, explode todos os dias há décadas, dizimando famílias e obrigando jovens ainda adolescentes a guerrear. A saída para quem não quer lutar ou tem a vida em risco por motivos políticos é abandonar seu país. Prova disso são os números de refugiados que chegam aos portos brasileiros – só em São Paulo, a média é um por dia. Segundo dados do Comitê Nacional de Refugiados (Conare), temos no País 2.731 refugiados – 80% vindos do continente africano. Os traumas da guerra, o stress da fuga, o abandono de amigos e parentes ainda vivos e até o fato de ser um sobrevivente compõem um fardo pesado que os deixa em situação de extrema fragilidade. Essa é a conclusão de quatro anos de estudos da psiquiatra e psicoterapeuta Carmen Lúcia de Santana, coordenadora geral do projeto de arteterapia do Hospital das Clínicas de São Paulo. Em sua tese de mestrado ela observou 600 deles e criou uma metodologia específica para avaliar como vivem, o que pensam e o que sentem os refugiados. “Eles passam por uma grande crise de identidade. Perdem todas as suas referências”, observa a psiquiatra.

Diante dos horrores da guerra, muitos arriscam a vida embarcando clandestinamente em navios sem nem mesmo ter a certeza do destino. Alguns acham que estão indo para os Estados Unidos ou para o Canadá, onde pelo menos não teriam problemas com a língua, já que muitos daqueles países foram colônias da Inglaterra e da França. Foi o que aconteceu com Jean Pierre Lusila Kinkunga, 29 anos, que chegou aqui em 18 de julho vindo do Congo (ex-Zaire), em guerra civil até 1999 e com conflitos étnicos que se arrastam até hoje. Ele e mais três amigos se enfiaram nos porões de um navio de carga munidos apenas de um galão de água. Foram 22 dias só molhando a boca. Ele mesmo não sabe como sobreviveu. Conta que tinha em sua terra uma fábrica de armas de caça e foi acusado de fornecer munição para os guerrilheiros. Teve que fugir, deixando mulher e duas filhas, das quais não tem notícias. A saudade da família é agravada pela inatividade. “Divido o tempo entre as aulas de português e de informática. O duro é dormir no albergue noturno e ter que sair às sete da manhã. Faça chuva ou faça sol”, diz ele.

Agruras – Ao chegar ao Brasil, os que querem abrigo são encaminhados a agências como o Centro de Acolhida para Refugiados, da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, mantida pela Igreja Católica, que trabalha com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Depois, eles têm de aguardar que o governo brasileiro os reconheça como refugiados – legalmente são tidas nessa condição as vítimas de perseguição por questões de raça, religião, nacionalidade ou participação em determinado grupo social, que correm risco de vida em seu país. Ter um local próprio para ficar enquanto não conseguem dar um rumo à vida, dizem, amenizaria as agruras da mudança forçada. Nos albergues, dividem espaço com a população de rua. “Eles não se identificam com as pessoas atendidas lá e ainda têm que sair logo que amanhece. Às vezes, ficam perambulando pelas ruas do centro”, explica Cezira Furtim, coordenadora da agência da Cáritas. Para evitar a ociosidade, outros acordos firmados com o Sesc, Senai e Sesi favorecem algum lazer, aulas de português e cursos de profissionalização, como o de informática.

Um novo centro, ainda em formação, tem dado algum alento à vida de algumas dessas pessoas. Instalado numa antiga fábrica de niquelação, o Espaço Cultural Feirafro Gamelas, mantido por Maria Augusta da Silva Antônio, 57 anos, e Ivone Rodrigues Amaral, 50 anos, donas do restaurante Gamelas, em São Paulo (reinaugurado no dia 20), viabiliza aulas de francês, inglês e cultura afro e tem roupas típicas e quadros à venda. Tudo fruto do trabalho de refugiados. “Eles se ocupam, podem se firmar como professores ou artistas e ainda ajudamos as pessoas carentes. Cobramos R$ 15 por mês pelas aulas, R$ 10 ficam com eles e R$ 5 para o centro”, explica Maria Augusta.

Folha ao vento – O local mudou a vida do angolano Zeferino Mpembele, 31 anos. Estudante de fisioterapia, ele deixou o centro médico onde trabalhava com o pai, se afastou da mulher e dos quatro filhos para fugir da guerra que já dura 40 anos em seu país. “Minha aldeia não existe mais. Todos os homens têm de lutar. Se não quer matar, tem de fugir”, lamenta. Mpembele fala bem o inglês, o francês e o português. Como tinha viajado outras vezes para o Exterior para comprar remédios, usou o mesmo expediente para vir para o Brasil. Agora confecciona colares africanos, enquanto procura alunos para as suas aulas. “Não tenho documentos que provem o meu preparo. E não sei ficar parado”, diz ele. O novo ofício de artesão é dividido por Mbala Mutambay, 24, que veio do Congo. Estudante de filosofia e filho de políticos, ele fugiu das retaliações do governo. Reticente, revela pouco de sua vida. “Meu país não é um lugar seguro, por isso estou como uma folha ao vento. Mas é preciso trabalhar e seguir a vida”, sentencia.

Para as mulheres que fogem de seus países, a vida é assustadora no início, mas depois se ajeita com maior facilidade. As agências evitam colocá-las nos albergues e procuram famílias ou refugiados já estabilizados para recebê-las. Luzimameso Bamoka, 30 anos, por exemplo, chegou há um ano e mora com uma amiga. Aeromoça em Angola, tinha ligações afetivas com um político da oposição e corria risco de vida. Costurando roupas típicas no Feirafro Gamelas, ela tenta amenizar a saudade do filho de seis anos que deixou com parentes. “As mulheres que vêm sozinhas ficam fragilizadas, mas trabalham até em casa de família. Já o homem demora muito para conseguir um emprego. E para a identidade masculina a questão profissional é fundamental”, ressalta a psiquiatra Carmen.

Ela percebeu também que a crise de identidade dos refugiados negros é mais acentuada do que a dos brancos. “Eles não se identificam nem com o branco nem com negro brasileiro. Sentem o preconceito. Têm orgulho de serem africanos puros e acham que o negro brasileiro anda sempre de cabeça baixa”, aponta. A adaptação é menos traumática para cidadãos de nações que têm suas colônias, associações e igrejas no Brasil. Essas instituições funcionam como excelentes fontes de apoio. Foi do que se valeu a jornalista sérvia Tatjana Maksimovic, 34 anos, que em 1999 deixou a pátria por não poder trabalhar com independência sob o governo de Slobodan Milosevic. “Não queria pertencer a nenhum partido”, conta ela. Desde o início, teve o apoio de amigos, de uma igreja cristã ortodoxa e de um clube sérvio de São Paulo. “Em sete meses, comecei a dar aulas de inglês e russo. Consegui alugar meu apartamento, tendo a igreja como avalista”, diz. Para os que deixam Cuba, Colômbia ou Peru, a adaptação também tende a ser menos penosa. “Os latinos atravessam a fronteira como heróis, fugindo de perseguição política. Isso favorece a manutenção da auto-estima”, explica Carmen