Dizem os amantes incondicionais de William Shakespeare que todas as paixões humanas podem ser encontradas em algum lugar da obra do velho bardo inglês. Com uma produção tão vasta que alguns estudiosos acreditam não poder ter saído da pena de um único autor, sem dúvida Shakespeare desafia a criatividade do mais ousado dos romancistas, ao reunir e exibir despudoradamente os ódios e as paixões que grassam em cada família, cada reino, cada coração. Mas, se Shakespeare mostrou o drama das emoções já instauradas no caos que envolvia seus personagens, deixou para seus seguidores futuros um rico universo de causas e efeitos a ser desvendado. O que teria levado, por exemplo, a doce rainha Gertrudes a aceitar Cláudio, o impulsivo irmão e assassino do rei, como seu sucessor no trono e no leito? O que faz uma mulher criada sob os rigores de uma cristandade recém-instaurada no atrasado reino da Dinamarca arriscar sua alma e sua vida em nome do amor que a leva à traição de lesa-majestade? E como o arisco príncipe Hamlet surge das sombras de um auto-exílio forçado na rígida Alemanha para atormentar aqueles que provocaram a morte de seu pai?

Estas e tantas outras perguntas cujas respostas ajudam a compor o perfil psicológico de Hamlet, de Shakespeare, são o tema do livro Gertrudes e Cláudio (Companhia das Letras, 218 págs., R$ 27), do escritor americano John Updike. Autor fecundo, com mais de 50 obras publicadas cobrindo desde ficção até crítica de arte e literatura, Updike, do alto de seus muitos prêmios literários, não resistiu à tentação de abordar os bastidores da obra do bardo inglês. Com requinte de detalhes e preciosa ilação, ele oferece ao leitor não só a rainha leviana e seduzida, mas a mulher oprimida e enganada durante toda uma vida morna na corte de Elsinore. Como a peça original indica, o assassino não age apenas pela cobiça do reino e da mulher do próximo. Surge como um homem atormentado pela onipresente autoridade de seu irmão mais velho, o eterno vencedor que sempre o humilhou. Todos têm culpas, todos têm desculpas, todos são humanos e como tal morrem. E matam.

Hamlet, o príncipe angustiado, aparece aqui não como o rapazola de costume, mas como um homem feito, mimado, desajustado e congelado num mundo que não compreende e para o qual não foi preparado. Ele não pode entender a Dinamarca e a Dinamarca não o entenderá jamais. Suas dúvidas existenciais, seu "ser ou não ser" são intoleráveis à luz de um mundo que vive da realidade medíocre da periferia da civilização. Naqueles tempos, indecisões eram castigadas com a morte. A vida urgia da mão para a boca e o resto era a morte que, sabiamente, Shakespeare tratou de semear por todo o resto de sua obra. John Updike só veio para explicar.