"Será possível que eles só pensem em matar uns aos outros?”, indaga um desesperado pesquisador de Copenhague ao ser feito prisioneiro por quatro dias numa visita humanitária à África. Assim começa o romance A exceção, do escritor dinamarquês Christian Jungersen (Intrínseca, 560 págs., R$ 39,90), um thriller psicológico eletrizante que desvenda a crueldade humana nas relações entre colegas de trabalho. A fala inicial do personagem refere-se à guerra de etnias africanas, mas aplica-se perfeitamente às perversas relações profissionais num respeitável instituto dinamarquês voltado para o estudo do genocídio no mundo. O autor Jungersen é conterrâneo do cineasta Lars von Trier, diretor do filme O grande chefe, que faz uma sátira mordaz do assédio moral no mundo corporativo – crime que afeta 13 milhões de pessoas na União Européia e cerca de 30 milhões no Brasil. Com a mesma veia ferina do cineasta, o escritor mostra que os funcionários do centro reproduzem na convivência diária um outro tipo de violência com conseqüências tão nefastas como aquelas examinadas em seus estudos.

No decorrer dessa lenta tortura, as conseqüências são sinistras tanto para as vítimas quanto para os algozes: surgem complicações médicas, familiares, psicológicas e até policiais. Sociólogo, o autor trabalhou no Centro Dinamarquês para Estudos do Holocausto e Genocídio, o que sugere que ele se vale de sua experiência pessoal na construção da história. E, se for mesmo isso, deve ter sido amarga a sua passagem pelo Centro, porque todos os comportamentos anti-sociais, intolerantes e de autopreservação e omissão, levados às últimas conseqüências, estão retratados na trama. A personagem que mais se esfalfa para se integrar ao escritório onde trabalha é a recém-contratada bibliotecária Anne-Lise, levada ao isolamento devido a pressões de uma das colegas, que gostaria de assumir a sua função e quer forçá- la a se demitir. É quando se iniciam os comportamentos perversos.

Sentindo-se sempre excluída, Anne-Lise assume uma postura submissa e calada e passa a ser tachada de “estranha”. Dois emails anônimos com ameaças de morte a duas pesquisadoras que trabalham com a bibliotecária são a gota d’água para que, além de “estranha”, seja considerada “suspeita”. Ela passa a ter crises de choro, ansiedade e tensão, e isso a leva a procurar um médico. O especialista Yngve cita artigos recentes da literatura médica sobre assédio moral: “Há um aspecto recorrente na personalidade da vítima – ela, mais do que os colegas, não gosta de confrontos. É passiva, espera que os seus torturadores parem.” Ele apresenta à “paciente” três alternativas de ação: deixar-se demitir, ficar e permitir que suas colegas continuem a atormentá-la ou ficar e fazer com que essas pessoas parem de persegui-la. “Você é capaz de enfrentá-las?”, ele pergunta. Anne-Lise pensa e garante que sim. Volta confiante ao trabalho na manhã seguinte, mas as perseguições não param. A paranóia cresce e culmina com um homicídio.

Os perfis psicológicos dos personagens, todos tipos comuns que poderiam estar em qualquer empresa do mundo, são cotejados com estudos clássicos sobre a violência, como o ensaio da filósofa americana de origem alemã Hannah Arendt, Eichman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963). Ela revela que aquilo que mais a impressionou como testemunha no julgamento de Adolf Eichman (ex-chefe da Gestapo, a polícia nazista) foi descobrir que ele não era um homem abominável, louco e furioso – parecia um burocrata absolutamente comum. Essas reflexões são relatadas em A exceção nos artigos redigidos pela personagem Iben, que ganhara fama de heroína ao salvar um grupo de refugiados presos no Quênia – ela é carinhosamente chamada de Batgirl por alguns colegas.

Dona de um temperamento reservado e muito séria, Iben alia eficiência, inteligência e sensibilidade social a uma incrível capacidade de articular manobras para desarticular a equipe do centro de estudos. Parte dela a maquiavélica ação que lança sobre os ombros da passiva Anne-Lise uma outra acusação: a de ter trocado os medicamentos de uma colega que sofre de artrite reumática crônica. Iben termina sendo a principal suspeita do assassinato de uma colega de trabalho. Novamente entra em cena o médico Yngve, que atesta: “Assédio moral sistemático pode ser mortal. Trato tão seriamente quanto o câncer ou os problemas cardíacos”.

TIPOS DE ASSÉDIO MORAL EM EMPRESAS

Cena do filme O grande chefe

Novo emprego
Um funcionário pode ser isolado na nova empresa quando antigos empregados ficam com receio de sua concorrência

Rivalidade
A “fritura” de um profissional pode ser arquitetada por um colega que o responsabiliza por falsos erros ou o submete a situações vexatórias

Conspiração
Ao reportar situações de constrangimento ao chefe, o funcionário pode ser estigmatizado como delator e ficar ainda mais afastado do convívio social

Sem saída
Superiores hierárquicos podem desclassificar um profissional falando mal dele em outras empresas para deixá-lo acuado