Biografias de gênios são sempre recheadas de lendas e fatos extravagantes. A do espanhol Pablo Picasso (1881-1973), considerado o maior artista do século XX, não poderia ser diferente. Uma das mais fantasiosas passagens de sua trajetória mostra o menino malaguenho às voltas com o primeiro balbucio. Da sua boca não saiu a palavra papai ou mamãe, mas a sílaba “pis!” ao pedir um lápis para fazer suas precoces garatujas. Com oito anos, depois de pintar sua tela inaugural – dando início ao jorro criativo das mais de 1.200 que produziu ao longo da vida –, seu pai, um artista plástico mediano, simplesmente decidiu abandonar os pincéis. Nada modesto, Picasso diria mais tarde: “Nunca fiz desenhos infantis. Aos 12 anos já desenhava como Rafael.” As lendas são ótimas. Mas excepcional é o talento do pintor, desenhista, escultor, gravador e ceramista, cuja carreira foi uma síntese de todas as revoluções e conquistas da arte moderna. Esta avalanche de qualidades pode agora ser apreciada a partir da quarta-feira 28 na exposição Picasso na Oca, trazendo 125 obras do acervo do Museu Picasso, de Paris.

Contemplando todos os temas e fases do artista, o evento realizado pela BrasilConnects – orçado em R$ 6 milhões e segurado em 700 mil euros – é a mais completa retrospectiva do espanhol já feita na América Latina. Solicitada a destacar as obras mais importantes da mostra, a curadora Dominique Dupuis-Labbé alinhou duas dezenas de telas em menos de um minuto, o que dá a medida do valor do acervo exposto. “De um modo geral, as pessoas associam Picasso aos retratos com olhos e nariz fora do lugar. Essa exposição é uma reunião bastante significativa de obras e dá uma boa idéia da evolução do artista. O público vai se surpreender com a variedade de estilos e técnicas”, afirma Dominique.

Primórdios – Com desenhos, aquarelas, colagens, gravuras, esculturas e pinturas – 45 ao todo, quase um sexto do conjunto de telas do museu –, a exposição obriga a uma atenção redobrada. No andar térreo, no módulo sobre os primórdios do cubismo, estão o óleo Jeune garçon nu (1906) e os dois estudos para Demoiselles d’Avignon (1907), a tela fundadora do cubismo. São eles Buste de femme (1907) – quadro que traz os olhos amendoados e os traços simplificados da arte ibérica primitiva – e Buste d’homme (1907), com a figura de um marinheiro que nos esboços iniciais aparecia ao lado de cinco prostitutas. Diante deles, uma preciosidade da fase azul: Portrait d’homme (1902-1903), retrato de um louco com quem Picasso cruzava nas noites de penúria, em Barcelona. Embora a figura masculina esteja presente em vários trabalhos, a exemplo do belíssimo
La lecture de la lettre (1921), destaque do segmento dedicado ao classicismo com seu tocante elogio à amizade, salta aos olhos a grande presença do nu feminino. Todos elevados aos extremos da deformação. “O grande tema de Picasso foi a figura humana e a mulher, especialmente aquelas que o acompanharam”, diz Dominique.

Mulherengo incorrigível, Picasso se identificava com a figura mitológica do minotauro. Talvez porque, segundo reza a lenda, o ser metade homem, metade touro precisava se alimentar de virgens duas vezes ao ano para sobreviver. Ao que consta, o artista teve oito mulheres oficiais. Cada uma está associada a uma de suas famosas fases. Madeleine, que o chamava de vulcão, inspirou a fase azul. Fernande Olivier, autora do epíteto “fogo do inferno”, foi a musa da fase rosa. A atriz Eva Gouel, que morreu de tuberculose em 1915, viveu com ele a revolução cubista, na qual as pessoas e os objetos passaram por uma fragmentação em planos e cores que chegaram ao limite da abstração. Do cubismo primitivo do início do século XX ao cubismo clássico dos anos 1920, passando por suas variantes analíticas e sintéticas, a mostra traz 26 obras entre óleos, guaches, esculturas e colagens, com destaque para as telas Le Sacré-Coeur (1909-1910) e Homme à la cheminée (1916). Nesta, Picasso soma os planos geométricos de uma figura humana ao desenho clássico de uma lareira com um espelho.

Ao que se sabe, o artista não deixou nenhum retrato de Eva. Limitou-se a escrever em alguns quadros as frases “J’aime Eva” e “Ma jolie”. Mais feliz foi a bela loura Marie-Thérèse Walter, inspiradora de Femme assise devant la fenêtre (1937). Ela substituiu a intempestiva bailarina russa Olga Khokhlova, modelo para a desconstrução a que Picasso submeteu a figura feminina na década de 1930. O módulo dedicado a ela engloba 14 obras. Destaca-se Dormeuse aux persiennes (1936), cujo rosto dilacerado parece se desdobrar em dois. Para a curadora Dominique, o gosto do espanhol pela deformação vem de longe e já se fazia notar em obras do início de carreira, numa clara influência da pintura de El Greco. “Por volta de 1900, as pessoas já aparecem com as mãos enormes e os dedos alongados. É uma herança da pintura espanhola do século XVII, sempre afeita à monstruosidade.”