A inquebrantável decisão do presidente americano, George W. Bush, de atacar o Iraque para forçá-lo a se desarmar – ou para pôr as mãos no petróleo de Saddam Hussein – está criando condições para que os dois países mais poderosos da União Européia, a França e a Alemanha, esbocem a formação de um eixo Paris-Berlim – o “eixo da paz” ou o “eixo da inveja”, conforme o ângulo em que se vê –, fazendo um contraponto europeu ao unilateralismo de Washington. Esse suposto eixo ganhou força na semana passada na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar ocidental liderada pelos EUA. Na segunda-feira 10, a Alemanha, a França e a Bélgica bloquearam o planejamento militar que a Otan colocaria à disposição da Turquia, em caso de uma guerra contra o Iraque, conforme pretendiam os americanos. A Turquia é o único país muçulmano a integrar a Otan e também o único da aliança ocidental que faz fronteira com o Iraque. Mas alemães, franceses e belgas se opuseram ao envio à Turquia de baterias antimísseis Patriot, de aviões-espiões Awacs e de unidades treinadas em conter ataques químicos e bacteriológicos enquanto não forem esgotadas todas as possibilidades de se resolver a crise iraquiana por vias diplomáticas. Não é para menos: a maioria dos europeus se opõe à invasão do Iraque pelos EUA sem a expressa autorização da ONU, ao contrário dos americanos.

A reunião terminou em impasse e com a ameaça de rachar a Otan, tornando a mais poderosa aliança militar de todos os tempos “inócua” pela ação da “velha Europa”, nas palavras do secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld. No mesmo dia, aumentando o coro dos descontentes com a pressa de Tio Sam em invadir o país de Saddam Hussein, o presidente russo, Vladimir Putin, assinou um comunicado conjunto com o francês Jacques Chirac e o alemão Gerhard Schröder pedindo “a continuação e o fortalecimento” das inspeções de
armamentos feitas pela ONU no Iraque. E na terça-feira 11, a China manifestou sua concordância com as posições dos três países. França, Rússia e China, além dos EUA e do Reino Unido, são membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e, nessa condição, podem vetar qualquer decisão tomada pelo organismo. Na sexta-feira 14, pouco depois de o governo iraquiano ter “proibido” a importação e produção de armas de destruição em massa, o chefe dos inspetores da ONU, Hans Blix, disse que não encontrou evidências dessas armas no Iraque, mas não excluiu a possibilidade de que elas possam existir. Blix acrescentou que, se for o caso, Bagdá deveria apresentar provas de que destruiu essas armas ou entregá-las à ONU.

A formação de um eixo Paris-Berlim depende da capacidade desses dois países de pôr em prática uma política diplomática e de defesa comuns, que possa funcionar como contraponto à incontrastável hegemonia americana no cenário internacional e na Europa, em particular. Esse domínio da “nova Roma” se construiu aos poucos, alternando momentos de rejeição e admiração mútuas, mas, uma vez estabelecido, se revelou solidamente consistente. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), enquanto alemães, franceses e britânicos se matavam numa carnificina sem precedentes, um Tio Sam, isolacionista e próspero, olhava com desdém para o velho continente, que, a seus olhos, colhia os amargos frutos da maquiavélica política de dividir o mundo em esferas de influência. Forçado a entrar no conflito ao ver seus interesses econômicos ameaçados, mas alegando que o fizera para “tornar o mundo seguro para a democracia”, os EUA acabaram sendo decisivos para que a Entente (França e Grã-Bretanha) derrotasse a Alemanha e seus aliados. Mas os americanos se retiraram da cena diplomática mundial depois que a velha senhora européia, mesmo alquebrada, rejeitou as utópicas propostas do presidente Woodrow Wilson para reconstruir a ordem mundial e retomou suas práticas de realpolitik.

Vieram o fascismo e o nazismo, de cujos ventres nasceram a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto. O presidente Franklin Roosevelt só conseguiu convencer o povo e o Congresso americanos a entrar na guerra contra a barbárie nazista depois que o Japão atacou a frota americana em Pearl Harbour, no final de 1941. Os aliados venceram,
mas a Europa estava arrasada. Exauridos, dessa vez os europeus não tiveram alternativa senão aceitar a proteção americana. O temor de
que a URSS, senhora da Europa central depois da derrota do III Reich, estendesse seus tentáculos comunistas sobre a Europa ocidental fez
com que se crias sem as bases de uma aliança atlântica duradoura, expressa pelo Plano Marshall, através do qual os EUA financiaram a reconstrução européia, e pela Otan, aliança militar ocidental criada
em 1949 sob a liderança americana.

O primeiro a desafiar abertamente o poderio dos EUA na Europa foi o presidente francês Charles de Gaulle (1958-1969). Ele buscou o fortalecimento da então nascente Comunidade Econômica Européia vetando a entrada da Grã-Bretanha – que ele considerava um cavalo-de- tróia de Tio Sam no continente. Em 1963, De Gaulle estabeleceu com o chanceler alemão ocidental, Konrad Adenaueur, o Tratado Franco-Alemão que reconciliou os dois adversários históricos e deveria dar os primeiros passos em direção a uma força militar européia independente da Otan. Mal recebida pelos sucessores de Adenauer, a idéia fracassou. De Gaulle foi adiante na sua “grande querela” com os americanos e implementou a Force de Frappe (força de dissuasão nuclear), independente da Otan, e, em 1966, retirou a França do comando militar unificado da aliança. Além disso, buscou uma aproximação com os soviéticos tentando seduzi-los com a idéia de “uma Europa do Atlântico aos Urais”. Depois dele, o chanceler alemão Willy Brandt (1969-1974) também realizou uma aproximação com o Leste comunista, mas a iniciativa não teve, como em De Gaulle, o propósito de se contrapor aos EUA; ao contrário.

No início dos anos 90, a idéia européia ganhou novo impulso com a implosão do bloco soviético, a unificação da Alemanha e o Tratado de Maastricht, que criaria uma moeda única, o euro. Nessa época, prosperou a idéia de criar uma força militar européia independente da estrutura da Otan, mas ela naufragou em face da persistência da estagnação econômica nos países da União Européia. Ironicamente, a Otan, que vivia em profunda crise de identidade depois do colapso da URSS, encontrou uma nova raison d’être na incapacidade da Europa em pôr fim a quatro anos de massacres de minorias étnicas na Bósnia. Em 1995, por iniciativa americana, a Otan interveio militarmente e acabou com a guerra. Outra intervenção da aliança com semelhantes propósitos ocorreu em 1999 no Kosovo, confirmando a idéia de que a União Européia era “um gigante econômico, porém um anão político e militar”.

Mas a intransigência atual da Casa Branca parece ter dado uma nova chance à Europa, ou pelo menos ao eixo Paris-Berlim. Um professor americano ligado ao Departamento de Estado, que prefere não se identificar, disse a ISTOÉ que o conflito envolve interesses de seu país no petróleo do Iraque, mas as motivações da guerra são basicamente geopolíticas, porque Washington quer controlar o Oriente Médio e impor uma nova ordem na região, onde a Europa também tem interesses. “É preciso levar em conta a crescente influência da Europa”, disse o ex-presidente americano Bill Clinton numa entrevista à rede de tevê CNN. “O eixo franco-alemão não aceita o condomínio mundial anglo-saxão, dominado pelos EUA”, analisa o cientista político Antonio Carlos Peixoto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “França e Alemanha querem para a União Européia uma diplomacia autônoma e um complexo estratégico autônomo”, conclui. Se vão conseguir, é outra história.