A família de Bertrand Piccard não tem nada de superficial. Seu avô Auguste Piccard (1884-1962) inventou a gôndola pressurizada e foi o primeiro homem a romper a barreira da estratosfera a 16 quilômetros de altitude em 1931. Em seguida, criou o batiscafo e foi explorar o fundo do mar. Jacques, seu pai, aperfeiçoou a invenção e desceu em 1960 de submarino ao lugar mais profundo dos oceanos – os 11 quilômetros de profundidade da fossa das Marianas –, feito nunca repetido. A Bertrand restou a façanha de dar a volta ao mundo sem escalas a bordo do balão Breitling-Orbiter 3, ao lado do companheiro inglês Brian Jones. Eles decolaram da Suíça e em 21 de março de 1999 pousaram no Egito, após 20 dias de vôo a 11 quilômetros de altitude e a uma temperatura de 50 graus negativos. Durante rápida visita a São Paulo, na semana passada, este simpático psicoterapeuta suíço de 44 anos contou a ISTOÉ um pouco do que sentiu durante o vôo e como ele mudou sua vida.

ISTOÉ – Quando decidiu se tornar um aventureiro?
Bertrand Piccard –
Não sei se é possível decidir uma coisa dessas. Todas as vezes que tive que escolher entre permanecer com minhas seguranças e certezas e aceitar o risco de explorar algo novo, optei pelo novo. A primeira vez que vi uma asa-delta, decidi experimentá-la e me tornei campeão europeu. Quando fui convidado a cruzar o Atlântico num balão como co-piloto, aceitei e treinei com afinco. Era uma corrida de balões em 1992 e o meu balão ganhou. Aí veio a pergunta: o que fazer depois da travessia do Atlântico? Foi quando surgiu o sonho da volta ao mundo.

ISTOÉ – Como analisa a influência dos feitos de seu pai e de seu avô em sua carreira?
Piccard –
O que mais influenciou foi o estado de espírito dos dois em relação à vida. Se havia algo para ser explorado, eles o faziam. Tinham uma curiosidade natural pela vida. Quando quiseram explorar lugares onde ninguém jamais esteve, simplesmente construíram um balão estratosférico ou um submarino. Meu pai conhecia astronautas, mergulhadores, exploradores de todos os tipos. Eles eram os heróis da minha infância. Pude encontrá-los, falar com eles e descobrir que não eram malucos, mas pessoas normais, seres humanos com sonhos e idéias. Sempre os admirei e achei que podia ter uma vida como a deles. Quando a oportunidade surgiu, eu a agarrei.

ISTOÉ – O que o seu pai achou de sua façanha?
Piccard –
Como cientista e explorador, acompanhou tudo com muito interesse. Como pai, teve muito medo.

ISTOÉ – Nas três tentativas?
Piccard –
Sim, nas três. A primeira foi em 1997, quando fracassamos após seis horas de vôo. Na segunda, em 1998, tivemos que desistir após dez dias no ar. E também no vôo do Breitling 3, em 1999.

ISTOÉ – Você estava preparado para uma quarta tentativa?
Piccard –
Nossa patrocinadora, a fábrica de relógios Breitling, deixou claro que não teríamos um quarto balão. Caso não fôssemos bem-sucedidos com o Breitling 3, teríamos que mudar completamente a estratégia. Levaríamos alguns anos para desenhar um balão totalmente novo.

ISTOÉ – Nos 20 dias em que você ficou no Breitling 3, a 11 quilômetros de altitude, como era a sensação de estar separado do resto da humanidade?
Piccard –
Eu estava separado da humanidade, porém mais próximo da natureza. Viver nos céus por três semanas sem colocar os pés no chão é uma sensação muito estranha. Você é levado pelos ventos, viaja na velocidade das nuvens e vê todos os ciclos da natureza diante de seus olhos: pequenas nuvens crescendo e crescendo no meio do dia para desaparecer com a chegada da noite, a aurora, o crepúsculo, oceanos, desertos, continentes, é maravilhoso.

ISTOÉ – E os sons, como eram?
Piccard –
Quando os queimadores estavam ligados, só se ouvia o seu barulho aquecendo o ar do balão. No resto do tempo era silêncio absoluto. Mesmo a 200 km/h não se ouvia nada. Viajávamos com o vento. Era surpreendente.

ISTOÉ – Sente falta daqueles momentos?
Piccard –
Sim, mas não se pode viver sempre daquele jeito.

ISTOÉ – Como é ser um herói em seu país? Como convive com isso?
Piccard –
É ótimo ser um herói porque quando falo todos me ouvem. Mas, por outro lado, não posso falar tudo o que penso. Preciso dizer coisas inteligentes e pensar muito antes de abrir a boca porque todos esperam muito de mim.

ISTOÉ – Dê um exemplo?
Piccard –
Se estou num restaurante e o serviço é ruim e a comida, horrível, qualquer cliente se queixaria, mas, se eu fizer isso, todos vão dizer: “Só porque ele deu a volta ao mundo acha que pode tratar mal os outros.” É como uma armadilha.

ISTOÉ – Seu avô inspirou o desenhista Hergé na criação do personagem professor Girassol (das histórias em quadrinhas do Tintin). Em Jornada nas Estrelas – A nova geração, o capitão Jean-Luc Piccard seria um descendente seu no século XXIII. O que
acha disso?

Piccard –
O pioneiro vôo estratosférico do meu avô o colocou na história. Já Hergé o colocou no campo da lenda. Quanto ao capitão da Enterprise, pelo que sei ele foi inspirado no irmão gêmeo do meu avô, que se chamava Jean-Philippe. Os americanos mudaram o nome para Jean-Luc por que eles morrem de medo de sofrer qualquer tipo de processo.

ISTOÉ – O último astronauta saiu da Lua em 1972, mas ninguém nunca voltou à fossa das Marianas desde 1960, quando seu
pai lá esteve.
Piccard –
Eu sei. Talvez um dia eu faça isso.

ISTOÉ – Este é seu próximo desafio?
Piccard –
Talvez.