A esta altura, sem nenhuma cabeça decapitada pelos machetes dos jagunços do tráfico, sem nenhum traque explodido diante da delegação americana, sem nenhum brasileiro bêbado xavecando a mulher de algum político importante, a tensão parece ter pegado seu sombrero e partido de Guadalajara. Sim, ainda há muitos federales pelas ruas, mas o clima é outro. Em vez do semblante carregado, agora deixam os fuzis encostados na parede, enquanto beliscam um pacote de Doritos e deixam um engraxate lustrar seus coturnos. É nesse ambiente quase bucólico que os gualajarenses mostram que também têm jeitinho, só que mergulhado numa tina de pimenta jalapeño.

Desde o Brasil, tentamos credenciar nosso carro para poder entrar com ele nos locais de competição – acredita que a organização pede US$ 500 pelo selo? Estacionar longe significa atravessar um Saara carregando o equipamento do fotógrafo e parceiro João Castellano. A saber: uma mala de viagem – com lentes capazes de identificar a numeração da bota do Neil Armstrong impressa na superfície lunar, flashs, câmeras e cartões –, uma mochila com computador e as lentes mais utilizadas, uma bolsa gigante para os tripés de iluminação e, por fim, uma outra mochila, cujo conteúdo eu desconheço e tenho certo temor de perguntar. Pois bem, graças ao jeitinho, nossa carreira de carregador de safári chegou ao fim.

No domingo, perto do Centro Desportivo Revolución, prestes a conversar com atletas brasileiros treinando, fomos parados na primeira barreira policial. Senha para o Castell(h)ano entrar em ação. Depois de explicar para o guarda que entrenamiento és entrenamiento y juego é juego, conseguimos passar, mas ainda sob risco de sermos rebocados por uma “grua”, que é como chamam os guinchos por aqui. Para evitar isso, um segundo policial falou para a gente deixar um aviso de que o carro pertence à “prensa de Brasil”… Feito a mão! Fizemos, e tudo ficou mais fácil. Pouco depois, fomos à pista de boliche, e o primeiro policial já foi tirando o cone para que passássemos. Incrível, mas essa “credencial” abaixo acabou se transformando num eficiente lubrificante para furar as barreiras de Guadalajara.

 

01prensava.JPG

 

No começo do Pan, a Vila dos atletas era, como diria Nelson Rodrigues, uma bastilha inexpugnável. Passava-se por três barreiras e questionários até chegar perto da construção. Pior era no estacionamento. De jeito nenhum um carro civil podia entrar ali. Os responsáveis reagiam aos nossos pedidos para entrar com dentes expostos e salivações dignos de pitbull. Mas aí o Castellano resolveu bater um papinho mais de hermano pra hermano com os rapazes que tomam conta da entrada. Conversou até ouvir um: “OK, pero queremos un pin de Brasil”. 

Impressionante como são valorizados esses botons de prender na roupa. Na frente da Vila, um americano aborda todos que entram e saem, expõe parte de sua coleção e pergunta se ninguém está a fim de trocar. Pois bem, nós não tínhamos pin nenhum. Nem havia para vender na Vila. Como resolver o problema com os caras do estacionamento? Simples, com uma nota de 200 pesos. Agora, entramos ali, eles nos saúdam e indicam o melhor lugar. Acho que, se a gente pedir, até dão uma lavadinha no carro. Com cera.

Mas, para a infelicidade do nosso estômago, uma situação não admite jeitinho em Guadalajara. Saímos do centro de imprensa no domingo por volta das 21h. Famintos, fomos para a região da avenida Chapultepec, que concentra bares e restaurantes legais. Havia uma feira de artesanias indígenas no calçadão central. Paramos para ver, e acabei comprando bolsas para as minhas tias (não conte pra elas). Por volta das 22h, corremos para os restaurantes. Uma porta depois da outra, fomos recebidos com aquele gesto horizontal de limpador de parabrisa seguido da expressão “está cerrado”. Como assim? Os guadalajarenses não comem de domingo depois das 22? Com essa pergunta na cabeça e um pacote de batata frita no criado-mudo, fomos dormir. Não teve jeito.