Tudo que acontece de bom ou de ruim, na Bahia, é culpa minha ou do Senhor do Bonfim”, brinca o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). A semana terminou e o que parecia uma briga paroquial entre o cacique baiano e seu arquiinimigo, o deputado Geddel Vieira Lima (PMDB-BA), transbordou para o mais assombroso caso de grampo telefônico da República. Em vez de um ou dois inimigos locais, o grampo com anotações de próprio punho do senador – publicados com exclusividade na edição de ISTOÉ 1741 – esparramou-se por cinco Estados e 232 telefones, atingindo mais de 200 pessoas, entre políticos, jornalistas, profissionais liberais e desconhecidos. A única certeza, na Bahia e no País, é que, neste caso, o Senhor do Bonfim é absolutamente inocente. Além da rubrica de ACM nos papéis, as digitais do senador transpõem os limites da política. Os telefones de sua ex-namorada, Adriana Barreto, e do atual marido de Adriana, Plácido Faria, também foram monitorados ilegalmente. “Tenho provas de que ACM mandou nos grampear. Vamos contar tudo à polícia, coisas que ninguém imagina”, antecipa Faria.

O vilão da história, como sempre acontece no terreiro baiano, é ACM, que sobrevoa as 126 conversas telefônicas gravadas entre maio e agosto de 2002, em plena campanha eleitoral. ACM diz que recebeu apenas uma cópia e fez anotações. Não contou é que ele próprio se encarregou de espalhar os textos. Cópias das supostas degravações, com o comprometedor manuscrito de ACM, foram distribuídas pessoalmente pelo cacique baiano a pelo menos três pessoas em Brasília – e uma delas estaria disposta a comprovar em juízo que ACM é o mentor e responsável direto pelo grampo. O senador, que não é conhecido pelo mal da língua presa, vivia momentos aflitos esta semana: políticos carlistas diziam que o cacique tinha falado demais e, numa de suas conversas, teria deixado registrada a autoconfissão. Não seria a primeira vez: em 2001, ACM avançou o sinal e admitiu, numa conversa gravada, ter violado o painel do Senado. Pego em flagrante, ele só se livrou da cassação pela renúncia. O cacique voltou, mas parece não ter aprendido a lição: enrolado em fios de telefone e fitas de gravação, entrou em rota de colisão – outra vez – com a ética.

Dois anos atrás, ACM tinha contra ele, além da consciência crítica da Nação, a antipatia do Planalto de FHC. Agora, parecia ter a simpatia do Planalto de Lula, que ele apoiou no segundo turno e a quem promete a fidelidade canina de sua bancada. Parecia. Depois da hesitação inicial, quando o governo rechaçou a idéia de uma CPI, o governo sentiu no ar o cheiro de dendê e aumentou o fogo da fritura. Numa reunião ao anoitecer de terça-feira 11 no Palácio do Planalto com o ministro da Casa Civil, José Dirceu, os líderes do PT concluíram que desta vez o baiano exagerou na pimenta – e o governo petista não deve queimar a língua por causa dele. Dirceu avisou: “Acho esse caso mais grave do que o painel, porque remete para a ditadura da qual fomos vítimas.” Uma CPI não está descartada, mas Dirceu espera que a PF chegue ao mandante. “Os instrumentos de investigação são nossos. Vamos até as últimas consequências”, prometeu o ministro.

Os sinuosos caminhos da política brasiliense reservavam uma ironia
para a terça-feira 11. Enquanto três vítimas da arapongagem – os
líderes do PT, Nelson Pellegrino, e do PSDB, Jutahy Magalhães, e o
ex-deputado Benito Gama – reclamavam rapidez no inquérito da PF,
o principal suspeito do crime era indicado pelo PFL para presidir a poderosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, que
é a guardiã das leis brasileiras. Diante de um processo de cassação,
a comissão presidida por ACM é que dá o sinal verde (ou vermelho)
para os casos de perda de mandato.

A história do grampo começou a vazar em Itapetinga, a 570 quilômetros de Salvador. Em março de 2002 o delegado Valdir Barbosa, um dos policiais de confiança de ACM e braço direito da ex-secretária de Segurança Kátia Alves, procurou a juíza Tereza Cristina Navarro Ribeiro para pedir o monitoramento de 24 telefones. Na época, a juíza investigava o sequestro de duas crianças. Embora os sequestradores já estivessem identificados e presos, o delegado Barbosa, hoje chefe da Polícia Civil no Estado, convenceu a juíza de que era preciso mais. Saiu de lá com os números grampeados. Voltou outras cinco vezes sempre com novos números de telefone. Na primeira autorização judicial lá estavam os telefones dos baianos Geddel, Pellegrino e Benito Gama.
 

Os números de Geddel foram falsificados grosseiramente no ofício da juíza utilizado pela polícia para autorizar o grampo. O de Pellegrino foi também incluído no ofício, mesmo não constando da relação entregue à juíza.Os números de Benito, de sua esposa e de sua filha também foram forjados. O telefone via satélite 8818-71128805, enxertado na lista, pertence a um assessor do deputado federal João Leão (PPB), inimigo de ACM. O número seguinte, final 8806, por coincidência, é do ex-ministro da Casa Civil de FHC Artur Virgílio, apesar de não ser baiano. Por trás da aparente legalidade do grampo, reinava a bagunça nos despachos da juíza. A maioria dos grampos valia por 15 dias, mas 31 deles eram “sem limite”. Além de Salvador e interior da Bahia, a escuta atingia Aracaju, Campinas, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.

“Não há um só baiano que duvide da participação de ACM no grampo”, acusou o líder do PSDB, Jutahy Magalhães. “Comprovado que algum parlamentar se utilizou do grampo, estará caracterizada a quebra do decoro”, completou Pellegrino. Outro baiano, o atual corregedor-geral da União, Waldir Pires, pediu à PF o rastreamento de seus nove telefones. “ACM foi criado à sombra da ditadura. Não tem responsabilidade com a democracia. A cassação está na lei”, sentencia Pires. Preocupado com a sobrevivência do chefe, o carlismo faz o impossível: correu na frente da oposição na Bahia e pediu uma CPI na Assembléia – garantindo maioria da comissão e a escolha do relator.

Comprometido com a apuração do caso, o diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, destacou um delegado de sua confiança, Gesival Gomes, para rastrear o grampo na Bahia. Fontes da inteligência da PF já pegaram o fio da meada: a central da grampolândia funcionava no térreo do prédio da Secretaria da Segurança, no bairro da Piedade, em Salvador. Era uma sala de acesso restrito, no Departamento de Crimes contra o Patrimônio, montada em 1998 com finalidades meramente policiais. Aos poucos, foi sendo desvirtuada. O quadro-negro que havia na sala começou a ficar pequeno para tantos telefones, monitorados a partir de uma maleta preta, de alta tecnologia, importada dos Estados Unidos por US$ 12 mil. Tudo funcionou muito bem, até a explosão do grampo no sábado 8. No dia seguinte, os arapongas, assustados com o vazamento, fecharam a maleta, desmontaram o quadro-negro e desativaram a central do grampo. Tudo virou pó. E não foi milagre do Senhor do Bonfim.

TESTEMUNHA CHAVE

O advogado Plácido Faria, marido de Adriana Barreto – a ex-namorada de ACM – acusa o senador de ser o mandante dos grampos ilegais nos telefones do casal. Faria antecipou que sua esposa irá confirmar no depoimento à PF ter ouvido do próprio ACM que os telefones do casal seriam grampeados. Plácido conheceu Adriana em um spa na Bahia há um ano.

ISTOÉ – Vocês sabiam que estavam
sendo grampeados?
Plácido Faria
– Eu já sabia que meus telefones e o dela (Adriana) estavam grampeados. Tem mais de um ano isso.
Só não tinha provas. Houve várias situações. Fiz uma brincadeira
com um amigo ao telefone que posaria nu numa revista. Esse fato
saiu em uma nota no Correio da Bahia (jornal de ACM). Claro que
o telefone estava grampeado.

ISTOÉ – Quem mandou grampear os telefones?
Plácido –
Quem grampeou nossos telefones foi o senador Antônio Carlos Magalhães. Ele próprio (ACM) disse a ela (Adriana) que iria
nos grampear, que iria me perseguir. Quando faz o mal ele mesmo assume. Para a gente, ele assumiu que iria grampear. É isso que vamos falar na PF. Que foi ele eu não tenho a menor dúvida.
Ele grampeou e deixou rastros.

ISTOÉ – Quando ACM disse isso a ela?
Plácido – (consultando a esposa)
– Em que período, Adriana,
que ele disse isso?

Adriana (falando ao fundo) – Em dezembro ou janeiro (2001/2002).
 

ISTOÉ – E por quê?
Plácido
– Ele é contra nosso relacionamento. Queria descobrir algo para me macular. Foi em vão. Adriana vai contar os reais motivos. Tudo isso piorou quando saíram notas de que eu tomei ela dele. Eu não tomei ninguém de ninguém. Ela vai falar dessa relação doentia.

ISTOÉ – Como será o depoimento?
Plácido
– Eu tenho provas de que foi ACM e vou apresentá-las na PF. Tenho várias pessoas que já se ofereceram para depor, mas não vou expor ninguém até lá. Isso mostra a atitude ditatorial dele, que me vistoriou por mais de um ano utilizando o Estado. Estou indignado, qualquer um ficaria. Ouviram conversas íntimas minhas, da minha família. Meus filhos estão em estado de choque. Minha mulher está com esgotamento psicológico. Eu vivi um isolamento social perdendo clientes no escritório, desfazendo uma sociedade. Até na minha fazenda a PM da Bahia foi para ver se Adriana estava lá. Eu vou processar o Estado por danos morais e materiais..