Quem assistiu a Roma de Fellini nunca esquece aquela cena em que uma
voraz escavadeira vai abocanhando a terra úmida do canteiro de obras do metrô da cidade, até dar numa sala repleta de afrescos, inacreditavelmente intactos. Mas a visão da maravilha é fugaz. Pelo buraco feito na parede entra no ambiente um vento imemorial, desfazendo em instantes as imagens
de sonho. Fato semelhante aconteceu há 29 anos, quando um grupo de camponeses do centro-leste da China começou a escavar um poço e, ao afundar a quatro metros da superfície, deparou com imensas estátuas de soldados e cavalos feitos de terracota. A diferença é que, ao serem descobertas, as esculturas não viraram pó. E, na verdade, não eram duas nem três, mas cerca de sete mil representando militares de 1,80 m de altura. O impressionante tesouro passou a ser conhecido como Os guerreiros de Xi’an, em referência ao local onde foram achados, a capital da província de Shaanxi, sede da antiga dinastia Qin, que durou de 221 a 207 a.C. A partir da quinta-feira 20, os brasileiros vão poder conhecer de perto 11 destes soldados de mais de dois mil anos e mais dois cavalos do mesmo exército subterrâneo na imperdível exposição Guerreiros de Xi’an e os tesouros da Cidade Proibida, uma realização da BrasilConnects, que até maio ocupará a Oca, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Limitasse apenas aos guerreiros, a mostra já garantiria seu posto de um dos grandes acontecimentos do ano. Mas a megaexposição traz ainda 250 peças artísticas, arqueológicas, religiosas e do cotidiano, com objetos que datam do período neolítico – ou seja, achados de sete mil anos atrás – até a dinastia Qing, a última da China Imperial, que se despediu do poder em 1911. Orçada em R$ 4 milhões, a mostra é, com certeza, a maior sobre a cultura chinesa já realizada no País. Do subsolo ao segundo andar da Oca, o que se vê é um luxo avaliado em cerca de US$ 120 milhões, cujo percurso de visita termina com a deslumbrante remontagem de uma sala de trono da Cidade Proibida, exibindo ouro, jade, seda, jaspe e porcelana. Trata-se de um acervo tão valioso que o evento previsto para outubro do ano passado teve de ser adiado por quatro meses devido aos termos do seguro, cujo prêmio é de US$ 500 mil.

Obviamente, não é a primeira vez que um grupo do surpreendente exército dos guerreiros de Xi’an sai da China. Eles já foram mostrados em Paris, Londres, Nova York, México e Monte Carlo. Mas não em igual quantidade. Segundo Emílio Kalil, diretor-executivo de projetos da BrasilConnects, a liberação de um conjunto maior deve-se a um pequeno detalhe na negociação. “Concordamos em mostrá-los em vitrines individuais, ao contrário dos outros museus, que os exibiram em conjunto, atrás de um único muro de vidro.” Detalhe que acabou fazendo uma grande diferença. Por causa das vitrines, o visitante poderá chegar perto das peças, o que é impossível até na China, onde são vistos de cima de pontes, a uma distância considerável – à exceção de alguns exemplares maiores, que também estão em vitrines. Graças à proximi-dade, pode-se apreciar, por exemplo, a diferença do penteado de cada soldado, signo definidor da hierarquia na guarda imperial, como explica
Jin Xianyong, da Administração Estatal do Patrimônio Cultural da China/Shaanxi Province. “Os que usam coque são da infantaria e os
que têm o cabelo dividido ao meio são generais.”

Embora os guerreiros mostrados tenham uma coloração chumbo, na verdade eles levavam tons de vermelho, verde, azul e púrpura. Alguns foram encontrados com as cores perfeitas, mas, ao entrar em contato com o ar, tiveram a camada de pintura enrugada e dissolvida, por ser feita com aplicação de pigmentos sobre demãos de laca. Ao todo, o grupo de militares em exposição é formado por um general, três oficiais de patente média, dois guerreiros – um com armadura e outro em trajes cerimoniais –, dois cavaleiros, dois arqueiros e um condutor de carruagem. Estes e os outros milhares ganharam forma sob ordens do imperador Qin Shi Huang Di, lembrado nos registros da época como um tirano dotado de “coração de lobo”, responsável pela primeira versão da Grande Muralha. Como a tropa deveria servi-lo pela eternidade, foi enterrada numa área de 20 mil metros quadrados, a 1,5 quilômetro do seu gigantesco mausoléu, obra que mobilizou 700 homens. É uma construção iniciada em 246 a.C., quando o Huang Di herdou o trono do Estado de Qin, aos 13 anos, e só terminada 38 anos depois, quando o imperador já estava morto. A posição do Exército, a leste do túmulo e em formação de batalha, visava proteger a capital das tropas dos seis Estados conquistados por ele nas guerras que travou para unificar a China. O nome do país, aliás, vem de Qin, cuja pronúncia é “tchin”.

Segundo o banqueiro Edemar Cid Ferreira, presidente do conselho da BrasilConnects, as negociações para a vinda deste tesouro arqueológico começaram em novembro de 2001, com o acordo firmado no IV Programa de Cooperação Cultural Bilateral entre China e Brasil, pelo Ministério das Relações Exteriores. “Na época, convidamos uma comitiva de ministros, curadores e diretores de museus chineses para conhecer o nosso trabalho. Nós os levamos para ver a exposição Brazil: body and soul, no Guggenheim e no British Museum. Depois, os trouxemos para visitar a exposição de arte russa. Eles se aperceberam logo da importância da BrasilConnects em relação às artes visuais.” Mesmo assim, não foi fácil convencer os chineses. “Estamos lidando com um patrimônio de cinco mil anos, e não com peças do século passado”, explica Kalil, que tratou dos detalhes técnicos e logísticos com a equipe chinesa em cinco viagens.

O acervo milenar, que pesa 22 mil quilos, viajou de Pequim até Los Angeles em quatro cargueiros da Air China. Lá, foi transferido para uma aeronave da Lan Chile, que desceu no Aeroporto de Viracopos, em Campinas. Para maior segurança, algumas peças nem foram retiradas dos suportes de pedra sobre os quais estão assentadas na China. É o caso da belíssima escultura em cerâmica Figura reverenciando em posição ajoelhada, da dinastia Tang (618-907), uma das 20 peças que saem pela primeira vez da China. “Foi uma briga de foice conseguir esta obra”, afirma Kalil. “Os chineses só ofereciam cerâmicas policromadas do neolítico, sem dúvida raríssimas, masque lembram bastante a produção marajoara.” Outra obra especial é Cavalo, escultura em bronze do período Leste-Jin (316-420), que embeleza o chamado Núcleo Shaanxi.

Exibido no térreo, este segmento da exposição, que complementa o conjunto dos Guerreiros de Xi’an, mostrados no subsolo, reúne cerâmicas, objetos em jade e em osso do neolítico, bronzes belíssimos, como o Vaso para vinho em forma de boi, do período Oeste-Zhou (1027-771 a.C.), e peças religiosas e cotidianas das grandes dinastias. Para marcar o clima de sítio arqueológico, os cenógrafos Daniela Thomas e Felipe Tassara criaram nichos cinza que abrigam as peças, algumas com simbologias totalmente alienígenas ao olhar ocidental. Pedir ao curador Jin Xanyong para destacar alguma delas é tarefa inútil. “Todas são importantíssimas, vocês conseguiram trazer as melhores”, diz, com sorriso budista. Vestido informalmente com camisa pólo e trazendo penduricalhos em vermelho, referentes ao signo do carneiro, ele não se furta, contudo, em
explicar detalhes de algumas peças curiosas, entre elas
Figuras de
12 animais do círculo sexagenário
, que com corpo de homem e ca-
beça de animal representam cada bicho do horóscopo chinês.
“Segundo a lenda, Buda foi chamando os animais e na sequência
vieram o rato, o boi, o tigre e assim por diante.”

Os andares superiores da Oca, onde abrigam-se Os tesouros da Cidade Proibida, receberam uma cenografia que lembra as construções do maior e mais bem preservado complexo de palácios da China Imperial. A cor predominante é o vermelho, símbolo da alegria e da felicidade. Todas as 120 peças vieram do Palace Museum de Pequim e vão de utensílios domésticos em ouro, pincéis para caligrafia e jóias até as vestimentas e o mobiliário utilizados pelo imperador e sua família. Há também 11 armaduras mostrando os níveis hierárquicos do Exército chinês, vide a Armadura em ferro, com túnica dourada tecida em linhas geométricas, da dinastia Qing (1644-1911). Dentre as preciosidades decorativas encontra-se um Vaso de porcelana com desenho de damas jogando weigi, da dinastia Qing, época Yong Zheng (1723-1735). Mas o ponto alto, sem dúvida, é a reconstituição em detalhes da sala do imperador, com o trono, par de leques, biombo e dois conjuntos de 16 sinos, um em cobre folheado a ouro e outro em jaspe. O código de etiqueta de então pode ser conferido na pintura em seda Imperador Yong Zheng em traje de corte, da dinastia Qing. Ao lado, a mesma roupa de gala, feita de seda, revela o fausto de uma época que brilha na luz de um passado fulgurante.