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NOVA ERA
População comemora em Trípoli a morte de Kadafi, que ficou 42 anos no poder

Muamar Kadafi, 69 anos, se autointitulava Rei dos Reis da África. Também foi chamado de Che Africano, por causa do nacionalismo e do discurso revolucionário que marcou a primeira fase dos 42 anos no comando da Líbia. Com o petróleo jorrando em seus domínios, Kadafi passou décadas cortejado pelas grandes potências. Foi protegido de chineses, russos e, nos últimos anos, até de americanos e europeus, quando se opôs à Al-Qaeda, apesar de seu notório passado de terrorista. Cultivava um estilo de vida repleto de luxos e excentricidades, garantido pela fidelidade canina dos chefes tribais do país. Com essa trajetória poderosa, o surpreendente é que Kadafi acabasse morrendo num cenário que mais parecia briga de rua – chutado, cuspido e trucidado por uma turba. Mas foi o que aconteceu na quinta-feira 20, na cidade litorânea de Sirte, como mostram vídeos amadores que inundaram a internet. Em algumas cenas, Kadafi aparece de uniforme militar, com o rosto ensaguentado e o olhar perdido, sendo humilhado por homens armados, perto de um jipe. Em outras cenas, o antes temido ditador surge semidespido, ainda aparentemente vivo, sendo arrastado pelos cabelos, deixando um rastro de sangue no chão. Por fim, se vê o corpo de Kadafi estendido no chão, morto, com um ferimento no abdome.

“Esperávamos este momento há muito tempo. Kadafi está morto”, anunciou o primeiro-ministro interino, Mahmoud Jibril, na capital Trípoli, poucas horas depois de as cenas de selvageria começarem a circular pelo mundo. As circunstâncias da morte de Kadafi, no entanto, não foram esclarecidas pelo Conselho Nacional de Transição (CNT), que está no controle do país desde 21 de agosto, quando Trípoli foi tomada e Kadafi escapou com parte de seus seguidores. O ditador deposto ainda tentou resistir à rebelião que começara a se espalhar pela Líbia em fevereiro, após a derrubada dos governos da Tunísia e do Egito. Refugiado em sua cidade natal, fez um pronunciamento por rádio, declarando Sirte a nova capital do país. Último reduto de apoio ao ditador desde a chegada da Primavera Árabe, Sirte passou então a ser alvo de bombardeios diários das forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

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MUDANÇA
Homens do governo de transição festejam a morte do ditador deposto, que foi capturado vivo
e agredido em público, depois de ser localizado em duto nas imediações da cidade de Sirte
 

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Antiga morada de 75 mil habitantes, Sirte estava praticamente destruída quando, às 8h30 da quinta-feira 20, um novo ataque foi desfechado contra um comboio de 75 camionetes que deixavam a cidade. Pelo menos dois aparelhos atuaram para interromper o curso do comboio: um avião Mirage-2000 da Força Aérea da França e um Predador, uma aeronave não tripulada dos Estados Unidos. De acordo com o relato do insurgente Salem Bakeer à agência de notícias Reuters, logo depois que o comboio foi interrompido, a área passou a ser vasculhada por homens do novo regime. Ao se aproximar de um duto de concreto usado para drenagem, Bakeer teria encontrado um dos guarda-costas de Kadafi, que se rendeu, apontando o rifle para o alto e repetindo: “Meu chefe está aqui. Meu chefe está aqui. Ele está ferido.”

Retirado do duto, Kadafi foi levado para o centro de Sirte, cenário de sua morte. Pela versão oficial, o ditador deposto teria levado um tiro na cabeça durante um tiroteio. No entanto, o médico Ibrahim Tika, que examinou o corpo de Kadafi, atestou que a “causa primária” da morte foi a bala que “penetrou em suas entranhas”. O certo é que, enquanto a pistola folheada a ouro que Kadafi carregava consigo passava de mão em mão, no resto do país a bandeira adotada pelo governo de transição não parava de tremular. Comemorações foram registradas nas principais cidades, principalmente em Trípoli e em Benghazi, a “capital” da insurgência nos primeiros meses da revolta. Junto com Kadafi, morreram alguns seguidores próximos, inclusive um de seus oito filhos, o médico Mutassim, que havia assumido o papel de conselheiro de segurança do pai.

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As comemorações não se restringiram à Líbia. No Reino Unido, até os filhos do rei Idris, deposto em 1969 por um golpe de Estado liderado por Kadafi, faziam na semana passada planos para participar da reconstrução do país. Trata-se de um processo complicado. Antigas rivalidades regionais sempre marcaram a história da Líbia. Kadafi, aliás, soube como ninguém explorar as complexas divisões tribais para conduzir com mão de ferro o país de apenas seis milhões de habitantes e muitas reservas de gás e petróleo. A situação é tão delicada que, na noite anterior à morte de Kadafi, o primeiro-ministro Mahmoud Jibril disse temer que uma “batalha política” provoque o caos na Líbia. “Passamos de uma batalha nacional para uma batalha política que não deveria acontecer antes de se fundar o Estado”, afirmou Jibril. Primeiro governante a ser morto na sequência dos ventos da Primavera Árabe, a trajetória de Kadafi tem ainda muitos pontos comuns com a de Saddam Hussein, o ditador iraquiano capturado em um buraco de sua terra natal em dezembro de 2003. No Iraque, a execução de Hussein não apaziguou o país, até hoje conflagrado. Como Hussein, Kadafi foi um ditador cruel em um país rico em petróleo e comprador de equipamentos bélicos. Kadafi, antes de desaparecer, deixou ainda uma maldição de feitio iraquiano: gravou um vídeo sugerindo a seus seguidores que desencadeassem uma guerrilha com ataques a centros urbanos e a lugares estratégicos para a produção de petróleo.  

 

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