Depois de um almoço típico de domingo na casa de uma tia,
o produtor e cantor sertanejo Alexandre Alvarenga, 31 anos,
e sua mulher, Sara Maria, 32, destroçaram o quadro de família
feliz que representavam no bairro
de Cambuí, em Campinas, interior
de São Paulo. Tidos como pais amorosos e cuidadosos com os filhos, José Alexandre, um ano,
e Alessa, seis, eles quase os mataram depois de jogar seu carro contra outro veículo. Num acesso de fúria, Alexandre bateu várias
vezes a cabeça em seu Pálio, arremessou o bebê contra o pára-brisa
de uma Blazer em movimento e começou a bater a cabeça da filha
numa árvore próxima. A mãe, como que contagiada, também socava
a cabeça na árvore. Os dois só foram contidos com sedativos. Acusado de dupla tentativa de homicídio, o casal ficou, por decisão judicial,
quase a semana inteira na ala de psiquiatria do Hospital Celso Pierro,
da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Na quinta-feira 6, um laudo toxicológico divulgado pelo Hospital Celso Pierro informou que o casal usou cocaína, sem precisar, no entanto, se no momento do acidente estavam sob efeito da droga.

O casal, que pode pegar até 30 anos pelo crime, foi levado ao Centro de Detenção Provisória do Complexo Penitenciário de Campinas e Hortolândia. O bebê teve traumatismo craniano e permanece em estado grave no Hospital Municipal Mário Gatti, enquanto sua irmã, que sofreu ferimentos leves, está sob os cuidados dos avós maternos.

O caso estarreceu a opinião pública ainda abalada pela história macabra
do cirurgião plástico Farah Jorge Farah, 53 anos, que na sexta-feira 24, uma semana antes, usou sua perícia médica para matar e esquartejar a ex-amante Maria do Carmo Alves, 46 anos. O
fato é que a sociedade tem vivido
um sobressalto atrás do outro com
a ocorrência cada vez mais frequente
de crimes em família. Só para listar alguns: há duas semanas, em Salvador, descobriu-se, por meio de seu próprio diário, que uma menina de 11 anos teria dado veneno de rato ao pai,
o pedreiro Celso Cerqueira de Jesus, fazendo-o entrar num coma que
já dura quatro meses. Tudo porque o pai não concordava com seu namoro com um rapaz de 19 anos. No dia 30, um adolescente carioca
de 16 anos degolou a avó, a dona-de-casa Tereza Lucas da Silva
Costa, durante uma crise de abstinência de cocaína. No início de
janeiro, sob efeito da droga, outro adolescente de 16 anos esfaqueou
a avó Iara Filgueiras, na Ilha do Governador. Outro caso, de triste mas ainda viva lembrança, é o da estudante Suzane, que em outubro de 2002, com o namorado e o irmão dele, matou a pancadas os pais, Manfred e Marísia von Richthofen, em São Paulo.

Todos esses crimes cometidos dentro de uma instituição antes tida como sagrada como a família, contra pessoas que em tese deveriam ser amadas e respeitadas, faz crescer o terror e o medo da violência, que sem pudores escorrega da via urbana para o espaço íntimo. Quando se fala em uso de drogas ou álcool, logo se acha uma justificativa para atos tresloucados como esses. É do senso comum julgar que pessoas drogadas ou alcoolizadas não sabem o que fazem. Não saber o que faz, no entanto, é muito diferente de matar alguém. Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, não existe fundamento científico de que a droga leva alguém a cometer crimes. “O que ela faz é liberar, potencializar o instinto agressivo que já existe na pessoa”, explica o médico. Nem mesmo uma síndrome de abstinência justificaria o desejo assassino. A falta de drogas ou álcool deixa a pessoa mais agitada, intolerante e deprimida, mas não agressiva, diz ele.

 

 

Mas e quando as atrocidades partem de pessoas insuspeitas, que aparentemente têm uma vida normal, que trabalham, estudam, são gentis com vizinhos e parentes, amam e são amadas? Seriam psicopatas? Com um sentimento de insegurança que se mescla à surpresa, a sociedade tenta justificar esses atos com a insanidade, mesmo que temporária. Todos dizem: fulano surtou.

Mas surtou por quê? E o que
é realmente um surto? Segundo
a psiquiatra Mara Cabral, do Departamento de Psicologia
Médica e Psiquiatria da Faculdade
de Ciências Médicas da Unicamp,
o surto pode acontecer quando
se passa por uma situação que não se é capaz de suportar. É um
estado psicótico que provoca inconsciência, com alucinações olfativas, táteis e auditivas. “A pessoa tem idéias delirantes e perde o senso
crítico do que está fazendo, pode cometer atos agressivos. Mas nem todo paciente psicótico é agressivo. Há pessoas predispostas que
são mais vulneráveis ao stress”, diz ela. A lógica diz que deve haver antecedentes na história triste do casal músico, que talvez nem mesmo
a família esteja a par. Ninguém apresenta uma fúria dessas sem um processo de desgaste. Alexandre Alvarenga poderia estar passando
por um forte período de stress, mas e o fato de a mulher dele ter “surtado” junto? Segundo Mara Cabral, é possível enlouquecer a dois
e até a três. “É o que se chama em francês de folie à deux ou à trois
e acontece em relações estreitas, em que há forte dependência. As pessoas vivem de forma muita intensa coisas boas ou ruins e lidam
com as tensões de forma conjunta”, explica ela.

Bomba – De qualquer forma, algo naquele domingo deve ter acionado o botão da bomba que estava prestes a explodir. Segundo a tia do músico, durante o almoço ele tomou um copo de cerveja, fato raro, já que não bebia nunca. No mundo das hipóteses, esse detalhe pode ser importante. Ele pode ter entrado no que se chama em psiquiatria de estado crepuscular, que é uma semi-inconsciência que acontece em situações de stress intenso, em quadros de disritmia temporal e também quando se está afetado por drogas ou álcool. Em pessoas predispostas a isso, um cálice de licor ou um copo de cerveja podem desencadear a crise. Elas ficam excessivamente irritadas, com alterações de humor, e fazem coisas de que não se lembram depois.

São muitos os caminhos de análise e as probabilidades, mas o assombro continua. E a quantidade de casos? Será que estamos tendo uma epidemia de surtos? As respostas a essa pergunta também são infindáveis, mas os estudiosos da mente humana avaliam que o problema está no impacto das grandes e rápidas transformações pelas quais passa a sociedade. É uma soma de fatores, há os aspectos de formação da personalidade, a mudança de valores morais e religiosos, a dificuldade em manter e sustentar uma família. Estamos vivendo muitas dificuldades socioeconômicas e há uma grande falta de perspectivas. Essa receita fica ainda mais explosiva com a pressão vivida no trabalho ou com a falta dele. “Pessoas com a auto-estima baixa, com problemas financeiros, acabam elegendo a família como válvula de escape, são os mais próximos que pagam o pato. Principalmente as crianças, por serem indefesas”, informa Cacilda Paranhos, psicóloga com especialização em violência infantil.

Os maus-tratos na infância
têm preocupado cada vez mais
os especialistas. Na mesma cidade
de Campinas, onde o bebê José Alexandre está internado após
a fúria de seu pai, a violência doméstica contra a criança
virou disciplina da Faculdade
de Ciências Médicas da Unicamp.
A responsável pelas aulas é a pediatra Denise Barbieri Marmo,
48 anos, mãe de uma garota de três. Ela integra ainda um grupo multidisciplinar que atende as
vítimas infantis encaminhadas
pelo Pronto Socorro do Hospital
das Clínicas de Campinas. Denise observou, desolada, que nos últimos anos a violência contra a criança vem crescendo. Os principais algozes são sempre pais, tios
ou parentes próximos. “Violência gera violência. Em 90% dos casos, esses mesmos pais foram crianças que sofreram maus-tratos. E
a consequência disso é muito
grave. As crianças ficam com sequelas e auto-estima totalmente comprometida. Sem falar nas mortes. Muitas vezes, elas são retiradas
de casa e os lares desfeitos”, afirma Denise.

Por outro lado, há pais condescendentes demais, que quase nunca dizem não a seus filhos. Isso também pode levar a uma desorganização familiar, com jovens e crianças que não sabem lidar com a frustração. Autora de A paixão no banco dos réus (Ed. Saraiva), que fala de 14 casos de crimes passionais dentro da família, a procuradora Luiza Nagib Eluf, de São Paulo, acredita que há uma crise de valores na sociedade. “Estamos num mundo que valoriza a ostentação, os bens, o consumismo desenfreado e neurotizante. Se não há outros valores que não sejam o dinheiro e a gratificação imediata, pelo consumismo ou pelo sexo, não se pode esperar respeito por nada ou por ninguém”, defende ela.

Suspense – Na contra-corrente, Jorge Forbes, psicanalista lacaniano da Escola Européia de Psicanálise, critica o simplismo de se colocarem todas as fichas de responsabilidade na criação dos filhos. Para ele, o que se está fazendo é usar diagnósticos antigos para uma doença nova. Ele considera que estamos vivendo uma situação inusitada, um novo fenômeno que inquieta muito e para o qual as velhas respostas – como o uso de drogas, a psicose, a possessão demoníaca ou a onda de moralismo que exige mais rigidez de pais e professores – não atendem mais. “Nossa sociedade vive um clima de suspense. A diferença entre medo e suspense é que no segundo não se sabe o que vai acontecer e temos que lidar com as próprias fantasias”, explica ele. Em sua visão, o que está acontecendo é uma quebra de padrões sociais. “Estamos num
mundo novo, o da globalização, lidando e querendo dirigi-lo com
o manual do mundo velho. Tínhamos uma sociedade verticalizada
para organizar as satisfações humanas. Havia modelos diante dos quais medíamos nossa atuação. Isso na família, no emprego. O poder do pai
era indiscutível, por exemplo”, afirma.

O psicanalista entende que hoje não há parâmetros fixos, estáveis
e valorizados, que orientem o caminho das pessoas. “Para alguns, isso
é motivo de alegria porque podem inventar o futuro. Para outros, é motivo de uma profunda angústia que os leva a soluções estapafúrdias
e até à fuga nas drogas”, diz. A globalização trouxe uma diversidade
de escolhas para a qual muitos não estão preparados. Para Forbes, precisamos aprender a lidar com as novas possibilidades do novo
mundo e criar um novo manual. “A vaca sabe ser vaca. Mas o homem precisa de bula para ser homem.”

A DUPLA DESAFINOU

Um sujeito tranquilo. Era essa, até
a tarde do domingo 2, a melhor forma para definir Alexandre Alvarenga,
31 anos. No prédio em que vive,
no chique Cambuí, em Campinas,
ao lado da esposa, Sara, 32, e dos filhos, Alessa, seis, e José Alexandre, um, levava uma vida sossegada e, acima de tudo, discreta. Um dos funcionários do edifício conta jamais ter ouvido qualquer sinal de briga
ou discussão no apartamento. Não havia também nenhum indício de
que o casal consumisse algum tipo
de droga. Com grande espanto, receberam a notícia do resultado
do exame toxicológico na quinta-
feira 6. A prova revelou que o
casal havia consumido cocaína.

Empregados e moradores contam que Sara e Alexandre nunca levantaram suspeitas. Eles não desgrudavam dos filhos, que eram cercados de mimos e carinhos. Costumavam levá-los ao estúdio na casa da mãe de Alexandre. A rotina do casal, que saía todos os dias para trabalhar no final da manhã e só retornava no início da madrugada, dificultava a criação de vínculos de amizade no prédio. Síndica há 11 anos, Marley Biagiotti, 56 anos, conta que não conhecia o apartamento da família. “Eles eram simpáticos, mas muito reservados”.

O músico teve uma formação rígida. Maria José Camargo Alvarenga, sua mãe, é católica fervorosa e trabalha como ministra da Igreja
de São Sebastião, no bairro de Bela Vista, onde mora. Viúva há 21 anos, criou Alexandre e a irmã, Daniela, 28, portadora de doença mental, praticamente sozinha. Alexandre não foi de dar trabalho.
Até então, nunca havia usado drogas, odiava cigarros e bebidas alcoólicas. “As festas na casa deles só têm refrigerante e suco.
Se alguém está fumando na casa da mãe, ele pede para a pessoa
ficar lá fora”, conta Irma Rampasso Germano, 59 anos, amiga de infância e vizinha de Maria José. No final de janeiro, diz ainda Irma,
ele teria dito à mãe que estava apreensivo por ter entrado num caminho errado, do qual não conseguia mais sair. Não se sabe a
que se referia, talvez ao ingresso na droga.

A religiosidade do casal Alvarenga também chamava a atenção.
“Certa vez, ele me disse para ir à igreja e distribuiu panfletos
do grupo de oração do qual fazia parte”, diz um funcionário do condomínio onde residiam. Xandy e Sara seriam integrantes da Renovação Carismática, corrente da Igreja Católica da qual faz
parte o padre cantor Marcelo Rossi. A pedido da mãe de Alexandre,
o padre Eduardo, coordenador da corrente em Valinhos, município vizinho a Campinas, foi ao hospital rezar pelo casal e pela saúde do bebê. Mas na comunidade ninguém sabe informar se Xandy e Sara frequentavam o grupo de oração. “Eu não os conheço. Mas a Renovação Carismática é muito maior do que isso tudo. Estou
orando pelo destino dessa família”, diz Carlos Alvin, coordenador
da Renovação em Campinas. Maria José, a mãe do músico, disse
que o casal estava afastado da Igreja havia alguns meses.

No almoço do domingo, Alexandre teria tomado um copo de cerveja
e começou a falar em Deus com certo exagero. “A Maria me disse
que até estranhou, de tanto que ele falou em Deus naquele dia”, conta Irma. Ao sair da casa da tia, o casal deixou a mãe de
Alexandre na casa de uma amiga. Depois, seguiria para o estúdio
de gravação, nos fundos da casa de Maria José, para encontrar
alguns músicos. Alexandre, entretanto, fez um percurso diferente
do habitual e foi parar próximo ao Bosque dos Alemães, onde de
forma insana quase matou os filhos.

De acordo com a agência de notícias Anhanguera, o pai de Sara, Santo Otávio Rosolen, disse, após visita ao hospital, que o casal estava participando de uma seita demoníaca contatada pela internet. “Agora eles estão com o pai”, teria dito a moça, acreditando na morte das crianças. A informação teria sido confirmada pela própria Sara a um carcereiro da cadeia pública de Valinhos, onde ela esteve detida. Dois dias depois, Santo desmentiu o que havia dito e não se manifestou mais. Em sua casa impera a lei do silêncio. Os Rosolen estão com a guarda de Alessa e ficam o dia todo com as janelas fechadas. O único a se manifestar é João Suzuki, cunhado de Sara. Ele afirma que o casal não participava de seita alguma. “Não sei a que igreja eles iam, se iam. Já deixei minhas duas filhas sob os cuidados deles e, até onde eu sei, são normais.” Nas demais tentativas de falar com os Rosolen, a reportagem de IstoÉ foi atendida pelo interfone da casa. A voz que se identificou apenas como “João, amigo da família”, disse que Alexandre e Sara eram da Renovação Carismática. Alessa, que já se recuperou dos ferimentos na cabeça e está com a avó materna, perguntou pelos pais algumas vezes e se distrai brincando com as primas, alheia ao estado de saúde crítico em que se encontra o irmão.