Antes de sua primeira decolagem a bordo de um ônibus espacial, o cinismo do astronauta improvisado Rockhound
é implacável: “Ei, Harry!”, ele chama
seu colega Harry Stamper, “você sabe que estamos sentados sobre quatro milhões de libras de combustível, numa coisa construída por quem fez o menor preço na concorrência oficial?” O diálogo é fictício; foi escrito pelo roteirista Robert Roy para o filme Armageddon (Impacto profundo, 2000), dirigido
por Michael Bay. Mas a tirada, na
boca do irônico ator Steve Buscemi, é cheia de verdades. E desse modo, na semana passada saiu do campo
do sarcasmo fictício para adentrar no território da profecia. As palavras de Rockhound/Busceni talvez sirvam para explicar algumas causas do acidente com o ônibus espacial Columbia, que explodiu e se espatifou nos céus do Texas, no sábado 1º, matando os sete tripulantes. Ou, quem sabe, um astronauta real tenha melhor resposta: “Orçamentos baixos, redução de custos operacionais, terceirizações indevidas de projetos, relaxamento de supervisões nas empresas privadas e pura ganância comercial são os fundamentos desta tragédia”, disse a ISTOÉ ninguém menos do que o legendário Neil A. Armstrong, o primeiro homem a pisar na Lua, no já longínquo 20 de julho de 1969.

Para uma nação ainda traumatizada pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, a visão apocalíptica de um céu azul, sem nuvens e cortado por um rastro de fogo lembrava o ataque às torres gêmeas de Nova York. Em pânico e na iminência de uma nova guerra, os americanos quase nem se lembravam que um desastre semelhante já havia ocorrido antes, em 1986, quando a Challenger explodiu 73 segundos depois da decolagem, matando toda a tripulação. A primeira desconfiança, logo afastada, era a de que se tratava de um novo atentado. A chuva de destroços se espalhou por cidades texanas como Palestina e Nacogdoches e se estendeu pelo Estado da Louisiana. Nas ruas pacatas, havia desde porções do ônibus espacial até pedaços de traje de astronautas e de corpos dilacerados. Ainda no dia do desastre, as ruínas chegaram a ser postas à venda num site de leilão eletrônico na internet.
No meio dos escombros, os investigadores recuperaram os restos mortais dos pilotos, entre eles uma americana de origem indiana e um israelense.

Exames de DNA e de dentição localizaram o suficiente para
a família do israelense Ilan Ramon cumprir seu ritual fúnebre. Aos
48 anos, o coronel da Força Aérea de Israel era considerado um
herói nacional. Em 1981, ele pilotou um dos oito caças F-16 que destruíram o reator nuclear construído pelos franceses em Osirak, perto de Bagdá, onde Saddam Hussein se preparava para fabricar plutônio enriquecido.

Uma hora antes do pouso no
Cabo Canaveral, na Flórida, a tripulação do Columbia iniciou
seu procedimento de reentrada na atmosfera terrestre. Como nos
demais vôos, a nave partiu com o nariz para cima e logo manobrou para reduzir a velocidade da nave. A equipe da 28ª missão do Columbia sacolejava a 80 quilômetros de altitude e a 20 mil quilômetros por hora quando surgiu o primeiro alerta de que algo ia mal. Eram 8h52 na Flórida (11h52 em Brasília) quando os sensores indicavam um aumento na temperatura na porção esquerda da nave. Às 8h59, o piloto automático chegou a corrigir a rota para a direita e a tripulação enviou um alerta à base, em Houston, no Texas. Os controladores de terra tentaram um diálogo: “Columbia, aqui Houston. Estamos vendo suas mensagens sobre a pressão nos pneus. Não recebemos a última.” O comandante do vôo, o americano Rick Husband, respondeu: “Entendido. Uh..!” Depois, veio o silêncio. Foi o último contato da missão.

Se a equipe seguiu à risca o ritual do treinamento, os astronautas acompanhavam seus painéis de controle no momento da descida. Por isso, há quem suspeite que eles souberam de seu destino trágico minutos antes de a nave se desintegrar. A falta de contato com a Terra não significa que a bordo do Columbia os astronautas não tentassem falar com a base. O astronauta Edwin Buzz Aldrin, piloto do módulo lunar da primeira missão tripulada à Lua, recorda que na Apollo 11 a tripulação sabia que estava bem. “Quem estava sem contato eram as pessoas em terra”, recorda. Como o ônibus espacial não possui caixa-preta, a exemplo dos aviões comerciais, fica difícil precisar os momentos derradeiros dos sete astronautas.

Os trechos de decolagem e reentrada na atmosfera são os mais críticos de um vôo espacial e por isso os controles são quase todos automatizados. Tanto que a fabricante de computadores Hewlett Packard (HP) criou uma campanha publicitária para pegar carona na confiabilidade da alta tecnologia espacial. O comercial, que mostra um astronauta a caminho de casa e louva o trabalho das agências espaciais, saiu do ar, mas chegou a ser transmitido no dia da tragédia.

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O presidente George W. Bush determinou a paralisação do programa espacial americano
até que uma comissão mista, formada
por técnicos da agência espacial Nasa e especialistas independentes, descubra as
causas do acidente. As consequências a longo prazo dessa decisão ainda estão no campo das especulações. De imediato, o impacto será um atraso na construção da ISS (Estação Espacial Internacional), um esforço de 16 países liderados por EUA e Rússia, que inclui o Brasil. Prevista para ser concluída em 2004, a plataforma, de US$ 95 bilhões, custou mais de dez vezes seu preço original e deve ficar desabastecida. A maior parte dos suprimentos seguia a bordo dos ônibus espaciais Columbia. Por ironia, agora devem ser os russos – antigos rivais dos americanos na corrida espacial –, e sua modesta Soyuz, que farão o resgate dos três astronautas a bordo da estação. Segundo a Nasa, os dois americanos e um russo têm suprimento suficiente até junho. No plano original, a Atlantis partiria em março do Cabo Canaveral para buscá-los. A ordem agora é que o Atlantis, o Discovery e o Endeavour permaneçam em terra até o fim das investigações do acidente. Em 1986, quando a Challenger se espatifou no ar, o programa espacial americano ficou dois anos suspenso.

Muitos analistas consideram que a tragédia do Columbia foi gestada ao longo dos últimos anos, com o drástico corte nos orçamentos da Nasa. Em março de 1993, numa reunião no Departamento de Comércio, em Washington, o então secretário Ron Brown expôs a visão da administração Bill Clinton em termos de negócios. O engenheiro texano Barret Unseld, na ocasião funcionário de uma grande empresa da indústria aérea, ouviu do secretário que o governo estava disposto a entregar “maiores responsabilidades e participações” a companhias fornecedoras do programa espacial do país. “O governo Clinton acreditava muito na terceirização de serviços para a Nasa. A idéia era cortar o orçamento, economizando receita pública e encorajando a concorrência de empresas privadas”, relata Unseld. “Esperava-se diminuir custos por força dessa concorrência, além de permitir o aumento do volume de negócios da Nasa com parceiros privados”, diz.

Desde a implantação desta política operacional, o orçamento do programa espacial americano diminuiu dramaticamente. Alan Ladwig, da administração da Nasa e liason da agência junto ao Congresso, dá conta de que o acúmulo de cortes entre 1993 e 2003 chegou a 43% da receita da casa. “Somente em 1997 – no auge do boom econômico das empresas de tecnologia – a Nasa recebeu apenas US$ 11 bilhões. Pode parecer uma fortuna, mas, para a maior agência espacial do mundo, a receita é modesta. Nos anos posteriores, o massacre do orçamento continuou”, diz Ladwig. Para ter uma idéia, cada lançamento do Columbia custa US$ 400 milhões. A decorrência foi o abandono de vários projetos. “Tínhamos dois projetos para o pouso de naves não-tripuladas em cometas. Num deles trabalhava uma cientista brasileira, Jacqueline Lyra”, lembra o funcionário da Nasa.

Apertaram-se os cintos – não os de segurança, entenda-se. As evidências da decadência nos padrões da agência eram mais escancaradas onde deveriam ser mais rigorosas: nos programas ligados ao ônibus espacial. “Não podemos nos dar ao luxo de correr maiores riscos, pois estão em jogo vidas humanas. Nenhum outro programa da Nasa exige maior participação de astronautas”, disse a ISTOÉ o almirante da reserva Bernard Kauderer. Ele deve saber do que fala. Afinal, fez parte do painel de conselheiros sobre segurança, reunidos pela agência. O grupo, independente, com dois consultores privados e nove saídos da própria Nasa, chegou à conclusão de que os cortes orçamentários colocavam em risco as missões do ônibus espacial.

Em março, eles alertaram em relatório sobre diferentes perigos no programa, inclusive algumas falhas estruturais. Uma destas alertava para possível descolamento das placas de revestimento das naves. Esta epiderme do ônibus espacial é composta por pastilhas de cerâmica (mais ou menos do tamanho de uma caixa de fósforo), capazes de resistir ao calor de até 1600o C decorrentes do atrito da atmosfera com a nave na reentrada na Terra. Essas escamas são colocadas manualmente no corpo do veículo. “A Nasa sabia há mais tempo que algumas dessas pastilhas poderiam desgrudar. Mas o que se imaginava é que a nave suportaria bem estas perdas”, diz o almirante “A comissão da qual fiz parte avisou sobre a possibilidade de grande perigo, caso os deslocamentos de pastilhas se dessem na área da porta do trem de aterrissagem, um dos pontos mais frágeis do ônibus espacial. Também alertamos sobre os riscos do deslocamento e queda de entulhos, como pedaços de gelo (que estão grudados no tanque de combustível do veículo lançador servindo para sua refrigeração), e, o que é pior: fragmentos de espuma isolante térmica acoplados à parte externa do conjunto”, diz o almirante Kaudeser. E foi, ao que tudo indica, o que aconteceu. Um desses destroços se chocou com a porta do trem de aterrissagem, arrancando o revestimento. “Os pobres astronautas tiveram sua sentença de morte assinada já no lançamento. Eles não sabiam, mas nunca mais pisariam vivos no planeta que estavam deixando”, disse a ISTOÉ um ex-astronauta que pediu o anonimato.

Em vez de encarar os problemas apontados, a agência espacial preferiu matar o mensageiro. No final daquele março, demitiu cinco dos 11 membros. O almirante Kauderer, revoltado, pediu demissão em solidariedade aos colegas. “Não era possível corrigir os problemas com o que existia nos cofres da casa”, diz Stanley Hurst, consultor espacial ligado à Nasa. “A opção era seguir em frente, correndo riscos, ou usar verba para acabar com eles. As missões seriam atrasadas além do possível, provocando o cancelamento de experiências já acertadas e quebras de contratos com clientes externos. Todo o esforço para a construção da ISS ficaria comprometido”, diz Hurst.

Os dedos acusadores agora são colocados no peito da Nasa. Mas a
culpa pelo desastre não está exclusivamente no centro de controle
da agência em Houston. Estende-se também até Washington. Em
abril do ano passado, depondo num comitê do Congresso americano,
o ex-diretor do painel de segurança Richard Blomberg disse: “Meus instintos sugerem que a abordagem atual (da Nasa) está plantando
as sementes do perigo… Ninguém saberá com certeza quando a
margem de segurança se deteriora além do limite. Pode ser na próxima missão, ou na seguinte, ou mesmo na posterior, mas o limite será atingido em breve.” Mais um personagem com palavras proféticas. Os membros do comitê parlamentar colocaram máscaras de preocupação
e prometeram investigações profundas e imediatas.

 

O presidente George W. Bush, diga-se, procurou corrigir o rumo da tragédia. Em seu projeto orçamentário para 2004, submetido ao Congresso, estão reservados US$ 470 milhões a mais para a agência, fazendo a bolada da Nasa subir para US$ 15,47 bilhões. Mas, mesmo que tivesse sido aprovado em janeiro deste ano, o aumento seria insuficiente e chegaria tarde. “Os maiores culpados por este desastre são os políticos mãos fechadas”, sentencia o velho Armstrong.

Nos jornais americanos e na imprensa internacional, o coro dos descontentes também gritou a plenos pulmões. Do economista Paul Krugman à vetusta revista britânica The Economist, muita tinta foi gasta para demonstrar disparates e desperdícios no programa do ônibus espacial, sugerindo o fim das missões. Aviões comerciais também caem, mas ninguém pede o fim das viagens aéreas. “Os riscos de uma missão espacial são grandes, mas as recompensas são ainda maiores”, finaliza o homem que cunhou a frase: “Um pequeno passo para um homem, um grande salto para a humanidade.” Armstrong acha que as missões do ônibus espacial devem, e vão, continuar. E o povo americano concorda com ele: 82% acham que as viagens têm de prosseguir. São 2% a mais do que aqueles que apoiaram a continuidade das missões depois do desastre do Challenger em 1986. Prevalece o espírito da aventura.


O FASCÍNIO PELO COSMOS

Certa vez, a menina Patty Wagstaff chegou para seu pai e disse: “Quando eu crescer, vou ser piloto.” O pai pensou: “Delírio de criança, isso passa.” Para tentar desiludir a filha, ele disse: “Querida, mulheres não pilotam.” A resposta foi determinante na carreira de Patty, que viria a se tornar recordista em vôos acrobáticos da Nasa. Mulheres pilotam e atravessam as inimagináveis fronteiras do espaço, realizando o sonho de desvendar os mistérios do céu. A história de Patty foi contada a ISTOÉ por Walt Feller, do Museu da Nasa, em Washington DC. O museu – o mais visitado no mundo, com cerca de nove milhões de pessoas por ano –, possui uma réplica do Columbia. No sábado 8, dezenas de pessoas depositaram flores na réplica, convertido em um memorial. Algumas crianças não entendiam como as espaçonaves explodem e matam seus tripulantes. “Vi pais explicando sobre os riscos de ser um cosmonauta”, contou Feller.

“A admiração por essas fabulosas máquinas e o poder de controlá-las não é mero romantismo”, afirmou o historiador Walter McDougall. “É a nossa admiração pelo heroísmo que assegura a nossa soberania sob as máquinas e faz com que sejamos apaixonados pela tecnologia”, completou. Paixão descrita de maneira encantadora pelo maravilhoso Júlio Verne, que levou milhões de leitores à Lua 104 anos antes de Neil Armstrong e sua trupe ali aterrissar.

Esta admiração pelos heróis no espaço rendeu filmes e séries de televisão inesquecíveis. Quem tiver mais de 30 anos deve lembrar das peripécias do vilão ranheta Dr. Smith (Jonathan Harris, morto recentemente) de Perdidos no espaço. Ao contrário de Júlio Verne, que morreu na míngua, alguns cineastas encheram os bolsos com as produções faraônicas do espaço, como Jornada nas estrelas, que se tornou um ícone na televisão e no cinema. O jornalista Jeff Greenwald pesquisou o fascínio pela saga planetária de mais de três décadas. “Em cada cultura as pessoas assistem a Jornada nas estrelas de acordo com suas esperanças e pensamentos. Na Alemanha, Star Trek é uma forma de eles dramatizarem suas tendências militaristas. No Japão, houve uma atração pela hierarquia da nave Enterprise e os monges tibetanos viram um reflexo de sua mitologia do shambala, o futuro do paraíso”, afirmou Greenwald.

Para o campeão de bilheteria George Lucas (a série Guerra
nas estrelas
faturou US$ 900 milhões no mundo), a mitologia
moderna é uma reinvenção do velho faroeste com uma tecnologia
de ponta. “Ouvia dizer que os westerns eram o último espaço mitológico americano. Ao fazer cinema, queria criar uma nova mitologia, usando o espaço como uma fronteira que substituísse
o Oeste”, disse. A fascinação do público não é apenas pelos
cowboys cibernéticos, mas também a luta do Bem contra o Mal
que permeia o inconsciente coletivo.

Kátia Mello

 


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