Não há dúvida de que oferecer medicamentos mais baratos à população é uma vitória. O programa de distribuição dos remédios genéricos, lançado em 1999, surgiu com o objetivo de tornar disponíveis drogas que agem da mesma forma e apresentam a mesma eficácia de produtos consagrados no mercado (remédios de marca). Com a vantagem de custarem menos principalmente pelo fato de o fabricante não ter investido em estudos para o desenvolvimento do fármaco. Ele copia a fórmula de medicamentos com a patente vencida e usa no rótulo o nome genérico da substância ativa do produto. Algumas metas desse plano foram atingidas com sucesso. Dados da associação que reúne os laboratórios genéricos, a Pró-Genéricos, mostram que há três anos existiam 13 registros dessas drogas na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Hoje, são cerca de 700. O crescimento significa maior oferta de genéricos para males como pneumonia e gastrite. E só em 2002 foram vendidos 73 milhões de unidades desse gênero de remédio.

Mas, apesar do avanço, estão surgindo sinais de que alguns genéricos podem não ser tão eficientes. Há cerca de um mês, a Anvisa suspendeu a venda da isotretinoína genérica fabricada pelo laboratório indiano Ranbaxy. O remédio é usado contra acne grave. A medida foi tomada depois que a Vigilância Sanitária de São Paulo avaliou alguns lotes do medicamento. “A análise mostrou que o produto tinha problemas de dissolução e de absorção no corpo”, conta Tamico Oguri, da Vigilância paulista. Essas falhas podem comprometer a eficácia do remédio. No entanto, embora a Vigilância afirme ter feito a investigação no segundo semestre, o remédio só foi retirado do mercado no final de dezembro, quando o resultado da avaliação saiu no Diário Oficial do Estado.

Quem tinha urgência em saber a qualidade do produto é a médica Rosângela Assunção, de Natal. Em julho de 2002, seu filho, de 17 anos, começou a usar a isotretinoína genérica. “Ele tomava o remédio de marca e nunca teve problema, mas, como estava caro, troquei pelo genérico”, conta a mãe. A partir do terceiro mês de uso, o garoto teve tontura e foi levado para o hospital. No caminho, sofreu um derrame. Exames foram feitos e não revelaram a origem do problema. Rosângela procurou a Anvisa no mesmo mês para dizer que desconfiava do remédio.

O laboratório indiano Ranbaxy
teve direito a uma contraprova
aos testes realizados pela Vigilância.
Os exames, feitos por um laboratório independente indicado pela Anvisa, revelaram até o momento que
alguns dos lotes analisados estão adequados. Por isso, esses remédios foram liberados na semana passada
pela agência. Falta verificar o restante. O fabricante diz não entender o que aconteceu. “Fazemos uma cópia fiel do remédio de marca”, diz Ailton Wiliczinski, diretor da empresa no Brasil.

Nos consultórios, também há relatos de problemas em relação aos genéricos. Médicos paulistas já depararam com casos de pacientes que não respondem bem a esses medicamentos. O cardiologista José Ramires, diretor do Instituto do Coração de São Paulo (Incor), viveu essa situação. No ano passado, ele receitou o genérico enalapril, contra a hipertensão, para dez pacientes. Em vários, a pressão arterial aumentou e só foi controlada quando os pacientes recorreram ao remédio de marca. Por causa disso, Ramires desconfia da qualidade de alguns genéricos. “Sou favorável à política de genéricos, mas após esse episódio sinto mais confiança em prescrever remédios originais na minha receita particular”, afirma o médico. Ramires receita os genéricos apenas no Incor (os hospitais públicos são obrigados a receitá-los).

Outro que registrou falhas de eficácia foi o médico Fadlo Fraige Filho, diretor da Associação Nacional de Assistência à Diabete. Ele usou o enalapril genérico para tratar diabéticos hipertensos. “Várias vezes não funcionou”, conta. “Não receito mais”, afirma. O nefrologista Artur Beltrame, presidente do Hospital do Rim, de São Paulo, é menos radical. Já enfrentou complicações com o genérico enalapril, mas continua receitando essa categoria de drogas. Porém, toma o cuidado de optar por produtos de laboratórios conhecidos. “Estão surgindo várias empresas e é preciso ficar atento”, recomenda. Ele tem razão. No início do programa, 23 empresas abasteciam o mercado brasileiro. Hoje já são 37.

O administrador A.S., 43 anos, é hipertenso e foi uma das vítimas do genérico enalapril. Quando usava o remédio de marca, manteve a pressão sob controle durante três anos. Como o produto estava caro, resolveu trocá-lo pelo genérico. “No terceiro mês, comecei a me sentir mal e minha pressão ficou alterada. Tomava o remédio, mas não dava resultado”, lembra-se. A.S. voltou a usar o de marca e melhorou.

O empresário Ari Bergami, 68 anos, também passou por um susto depois de comprar um genérico broncodilatador para tratar a bronquite de sua mulher, Terezinha, 70 anos, há cerca de três meses. “Ela quase desmaiou”, conta. Quando tomou o original, Terezinha não sentiu mais nada. Esses casos reforçam a teoria de médicos como o oncologista Antônio Buzaid, do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. O médico acredita que são necessários mais estudos para mostrar que os genéricos são seguros. “Por isso, não adotamos esses remédios no hospital”, afirma.

Em tese, os problemas com os genéricos não deveriam ocorrer. Conforme determina a lei que regulamenta a comercialização desses remédios no Brasil, antes de chegarem ao mercado os produtos devem passar por dois testes para que seja verificado se possuem eficácia igual à do medicamento de marca. É feito o teste de biodisponibilidade, no qual é averiguado se a droga está sendo metabolizada no corpo de voluntários. Os pesquisadores analisam se o remédio entra nos vasos sanguíneos e atinge o estômago, por exemplo. Depois, o genérico passa pelo teste de bioequivalência, também feito em voluntários. Nesse caso, é analisado se a substância ativa do genérico é liberada na mesma velocidade e quantidade que o de marca.

Na opinião de especialistas ouvidos
por ISTOÉ, as falhas que vêm sendo registradas podem ser resultantes de brechas na lei dos genéricos. De acordo com eles, são vários os pontos frágeis
da regulamentação. Um dos principais
diz respeito aos genéricos importados.
Os especialistas não vêem com bons olhos as facilidades concedidas aos laboratórios estrangeiros para introduzirem os medicamentos aqui. As empresas podem fazer o teste de bioequivalência e de biodisponibilidade nos seus países. “Os exames deveriam ser feitos no Brasil, em laboratórios credenciados pela Anvisa”, diz o toxicologista Anthony Wong, coordenador do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP).
A Anvisa garante que os laboratórios estrangeiros são fiscalizados
e os testes só são aceitos se estiverem bem feitos.

Muitos médicos não aceitam a explicação e defendem sua posição. “A
lei permitiu que laboratórios desconhecidos de países como Paquistão
e Índia exportassem para cá”, informa Wong. O professor de clínica médica Antônio Carlos Costa Lopes, da Universidade Federal de São Paulo, também desconfia da procedência desses produtos. “Não consigo acreditar na qualidade de um remédio feito num país menos desenvolvido que o nosso. Não receito os genéricos estrangeiros”, garante. O médico Fadlo Fraige é mais enfático e questiona: “Você compraria um carro
feito nesses países?” De acordo com a Anvisa, essa facilidade aos laboratórios estrangeiros foi concedida para ampliar o mercado de genéricos. “Mas tudo foi feito sem prejudicar a eficácia dos produtos”, garante Vera Valente, gerente-geral de medicamentos genéricos da agência. O órgão informa que são enviadas equipes para fiscalizar os laboratórios onde são feitos os testes. Na opinião de Eloan Pinheiro, diretora de Farmanguinhos até a semana passada, muitos centros
desses países são tão bons quanto os daqui. “O problema é que às
vezes existe preconceito do médico contra os genéricos e também
falta de informação. Os especialistas são seduzidos pelo marketing
da indústria farmacêutica”, critica.

Outra queixa dos médicos é com relação ao fato de os testes de bioequivalência serem feitos apenas nos primeiros lotes do medicamento a ser comercializado. De acordo com os especialistas, o processo pode dar margem à falta de controle de qualidade do restante da produção. A Anvisa, no entanto, assegura que os laboratórios são fiscalizados anualmente. “Mas a fiscalização precisa ser contínua
e inesperada. Aqui, o processo costuma
ser anual, e geralmente o laboratório
sabe quando vai acontecer”, afirma o farmacêutico Wilson Follador,
da Sociedade Brasileira de Farmácia Hospitalar. Segundo ele, o Brasil deveria seguir o exemplo dos Estados Unidos. “Lá, a fiscalização
é inesperada e frequente”, conta.

Há mais críticas. Os especialistas reclamam do fato de alguns laboratórios produtores de genéricos terem o direito de realizar testes de bioequivalência em seus produtos ou nos de terceiros. “É a mesma coisa que a raposa vigiando o galinheiro”, compara Wong. A Anvisa não vê problema na questão. “É permitido, desde que os laboratórios estejam qualificados para o serviço”, diz Gonzalo Vecina, diretor da agência.

Na avaliação de médicos ouvidos por ISTOÉ, o motivo para a existência dessas brechas é político. O programa dos genéricos foi uma das bandeiras da campanha do ex-ministro da Saúde José Serra à Presidência da República. Por isso, segundo os especialistas, o processo foi montado de forma a permitir a chegada rápida desses remédios ao mercado. “O governo usou essa estratégia para ganhar força política. A política de genéricos é boa. O problema é a forma como foi implantada”, afirma o cardiologista Ramires. Serra não quis comentar as afirmações.

Um dos médicos garante que ouviu do próprio diretor da Anvisa, Vecina, a concordância de
que havia falhas na lei. Mas segundo Vecina teria afirmado na ocasião, não era possível fazer nada naquele momento, pois o ex-ministro Serra queria ser presidente. Vecina nega a ocorrência dessa conversa. Apesar de toda confusão, há médicos que nunca tiveram problemas com genéricos e se sentem seguros em prescrevê-los. Até porque é bom deixar claro que, para ser comprovado qualquer tipo de suspeita, é preciso a realização
de testes clínicos rigorosos. “Para saber se um remédio está funcionando é necessário levar em conta aspectos como interação com os alimentos
e outras drogas, por exemplo”, explica o clínico Antônio Lopes. O infectologista Caio Rosenthal, de São Paulo, garante que tem segurança em relação aos genéricos. “Meus pacientes nunca reclamaram e me sinto seguro sobre a eficácia”, diz. A mesma opinião
tem o cardiologista carioca Aloísio Tibiriçá Miranda, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro. “Os genéricos passam por testes e suponho que a vigilância seja constante. Confio nisso”, afirma. O novo ministro da Saúde, Humberto Costa, defende que a lei deve ser aperfeiçoada, mas acredita que, no geral, ela é eficiente.
“Neste ano, vamos investir no aprimoramento da qualidade dos laboratórios nacionais e, se necessário, tornar as regras mais rigorosas”, afirma. Com certeza, não faltará apoio. “A lei de genéricos precisa
mesmo ser revista”, defende Antônio Carlos Zanini, coordenador do Sistema de Informações de Medicamentos do HC/SP.

SIMILARES TAMBÉM NA MIRA

Os médicos suspeitam ainda da eficácia de alguns similares, drogas parecidas com os remédios de marca, mas não exatamente iguais. Não há uma resolução obrigando que os fabricantes submetam esses produtos a testes de bioequivalência ou de biodisponibilidade, por exemplo. Os remédios passam por testes menos sofisticados, como o que verifica a presença do princípio ativo.

O médico Artur Timerman teve
problemas com o similar de nevirapina fabricado pelo laboratório
Laob. A droga é usada contra a Aids e distribuída pelo Ministério
da Saúde. “A quantidade de vírus HIV do paciente estava
controlada e voltou a aumentar”, afirma. “Quando receitei o original,
a situação se normalizou”, lembra. A empresa Laob, de São Paulo, garante que seus produtos têm controle de qualidade e são rigorosamentes fiscalizados pela Anvisa.