Frei Betto lança livro de memórias do poder em que ataca a política econômica e os líderes do PT

Dissidente de primeira hora do governo Lula, o frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo está apostando numa ressurreição. A ressurreição do PT, o partido que, segundo ele, perdeu o rumo de casa por culpa dos dirigentes que afastaram a legenda das bases e a empurraram pela ladeira dos escândalos. Um dos fundadores do partido, Frei Betto tornou-se um dos principais conselheiros de Lula, subiu com ele a rampa do poder e teve direito a sala particular no quarto andar do Palácio do Planalto. Ali, atuou na organização do projeto Fome Zero, um de seus orgulhos. E ali também sofreu suas maiores decepções com o governo e o presidente, a ponto de pedir para sair da equipe no final de 2004. Sucumbiu porque não entendia o motivo de “tanta ortodoxia” na política econômica. Suas memórias sobre a temporada no governo estão em seu 53º livro, Mosca azul, reflexão sobre o poder (Editora Rocco, 320 págs., R$ 32), que chega às livrarias esta semana. A IstoÉ, Frei Betto contou suas mágoas com o governo e esperanças no PT.

ISTOÉ – O poder muda a face das pessoas ou, como o sr. questiona em seu livro, faz com que a verdadeira face se manifeste?
Frei Betto

Ainda não sei a resposta, mas é certo que a cabeça pensa onde os pés pisam. O PT foi eleito pelo MST, pela CUT, pelo povo das portas das fábricas, das comunidades eclesiais de base, dos movimentos de mulheres, de negros, enfim, o PT venceu em razão de suas profundas ligações com suas bases. Ao chegar ao poder, no entanto, o partido e o governo Lula passaram a tratar essas mesmas bases com distanciamento, incomodados com suas reivindicações, com sua marcha. Isso provocou uma mudança no discurso e na lógica ideológica do partido.

ISTOÉ – Essa mudança explica o fato de terem sido banidas as palavras socialismo e socialista do ideário do partido?
Frei Betto

Exatamente. Há uma metamorfose da linguagem e o fato de usar eufemismos, modificar a linguagem não significa que mudou a realidade. O pensamento burguês é mestre em fazer isso para iludir as pessoas, e o PT
repetiu essa técnica.
 

ISTOÉ – O sr. afirma no livro que Lula transferiu para o FMI e o G-8 o poder sobre a política econômica. O sr. chegou a dizer isso pessoalmente a ele?
Frei Betto

 Eu me reservo o direito de não revelar o que disse ou não ao presidente na condição de seu amigo. Fica na esfera privada. Mas eu reafirmo em público: é uma incongruência o presidente defender a autonomia do Banco Central. Ele não pode delegar ao BC e ao Ministério da Fazenda a direção econômica do País. Não entendo, com a história que tem, com o pensamento que tem, como Lula mantém tão aferradamente essa linha que está atravancando o desenvolvimento brasileiro. Na minha opinião, o fato de o Brasil ter pagado a dívida ao FMI não é motivo de orgulho. Gostaria que aqueles US$ 15 bilhões tivessem sido usados para pagar a dívida social, que é enorme.
 

ISTOÉ – Como Lula poderia ter aproveitado melhor o seu poder?
Frei Betto

Ele poderia ter mexido na estrutura fundiária, que considero a prioridade das prioridades. Aquilo que o [Fernando] Collor fez de mal, ao confiscar dinheiro de todos, Lula poderia ter feito de bem, ao mexer nessa estrutura. O Brasil, a meu ver, não tem futuro sem a reforma agrária.
 

ISTOÉ – O sr. critica também a decisão do PT de, para chegar ao Planalto, abrir mão da ideologia e render-se ao marketing. Dava para ter sido diferente?
Frei Betto

 Eu via outra alternativa. Havia um desgaste das forças políticas tradicionais, uma expectativa muito grande do novo e da mudança. O PT poderia ter chegado ao governo sem fazer tantas concessões à elite. Da mesma maneira que poderia ter tido aliados que não fossem adversários dos princípios defendidos pelo partido ao longo de sua história.

ISTOÉ – O sr. acredita numa guinada na política econômica num possível segundo governo Lula?
Frei Betto

O Lula foi eleito para varrer os tucanos no Ministério da Fazenda e do BC. No entanto, não só permaneceram lá como ditam a política econômica. Ela é mais ortodoxa do que no governo FHC. Nesse sentido, o governo Lula é esquizofrênico. Têm políticas sociais avançadas e uma política econômica ultraneoliberal. Essa contradição tem de ser resolvida. Fica complicado acreditar num projeto de desenvolvimento com uma política que beneficia o capital e acentua as desigualdades sociais.
 

ISTOÉ – O ex-presidente FHC acusou o PT de ter cultuado a ética da roubalheira. O PSDB está certo em bater duro?
Frei Betto

 Do ponto de vista deles, sim. O PT cometeu um grave erro de, no início de 2003, não apurar todas as denúncias de corrupção nos dois mandatos de FHC. Empurrou as denúncias para baixo do tapete. Resultado: eles vão bater forte na questão ética e o PT não vai ter fôlego para recuperar a memória popular em relação às maracutaias ocorridas na era FHC. Foi lamentável o PT não apurar o que aconteceu na privatização da teles e não investigar a dívida externa, como prometeu.
 

ISTOÉ – Essa guerra não prejudica Lula?
Frei Betto

 Acho difícil. Não há nada que o comprometa. Ele já disse em público duas vezes que foi traído e que levou uma facada nas costas…
 

ISTOÉ – O eleitor vai acreditar nisso?
Frei Betto

Lula e o eleitor também foram pegos de surpresa por toda essa maracutaia dos dirigentes do PT.
 

ISTOÉ – O sr. diz que a maior ameaça ao PT é o risco de não cumprir o seu papel de agente da transformação social. Como fazê-lo diante do mensalão?
Frei Betto

 Não tenho receitas, o livro é um diálogo meu com o leitor no sentido
de inquietação, interrogações. Vai depender do partido. Não pretendi indicar caminhos. Analiso sintomas, contradições, mas é o processo histórico que vai
levar a encontrar respostas.

ISTOÉ – Com que cara o presidente vai pedir um segundo mandato?
Frei Betto

Desde que acabou a ditadura, esse é o melhor governo que nós temos do ponto de vista social. Tem feito uma política externa altamente soberana e independente, inclusive levando ao fracasso da Alca. Há muitas razões para o eleitor votar nele.
 

ISTOÉ – Mas Lula não se transformou numa estrela cadente no Exterior?
Frei Betto

Ele foi uma estrela meteoricamente ascendente no Exterior quando empossado, devido ao simbolismo que carrega. Mas ele já não é tão forte, até porque hoje divide esse proscênio com os presidentes Hugo Cháves (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia). Tenho dito que a América do Sul é o que tem de novo no mundo e o Lula entra nesse conjunto.
 

ISTOÉ – A saída do ex-tesoureiro Delúbio, do ex-secretário Silvinho e a cassação do ex-ministro José Dirceu são o bastante para quebrar o autoritarismo no PT?
Frei Betto

Com a desarticulação do Campo Majoritário, por força do tiro que deu no pé com essas maracutaias, está criada a possibilidade de uma restauração do PT. Na mão do Campo Majoritário estaria fadado ao suicídio político, como de certa maneira ocorreu. Felizmente, as denúncias envolveram um grupo de dirigentes e não o partido como um todo, nem o presidente Lula. Essas pessoas estão politicamente cassadas e geraram em amplo setor da opinião pública, não só da esquerda, uma grande desilusão. O PT era o partido que representava os movimentos sociais e tinha um capital ético inestimável e incomparável em relação aos demais partidos.
 

ISTOÉ – Depois do escândalo do mensalão, o sr. ainda acredita que o PT é capaz de se recuperar nas urnas?
Frei Betto

Nesse ponto sou otimista. Vou votar no Lula. A nova direção do PT tem setores extremamente éticos e dispostos a resgatar as origens do partido, embora eu creia que isso venha a significar uma acirrada luta interna. O grande momento de redefinição do partido será após as eleições. Elas vão dar a ele a face real que possui diante do eleitorado. Mas o PT só terá futuro pela esquerda, nunca pelo centro ou na social democracia.
 

ISTOÉ – Como retomar o eleitorado?
Frei Betto

Há um setor significativo no eleitorado e na população que quer mudança. Não necessariamente de esquerda, mas de estrutura. Esse setor está órfão de uma representação política confiável. Ainda há muitos, como eu, que confiam no PT.
 

ISTOÉ – O presidente Lula acena com alianças à sua direita para se reeleger.
Frei Betto

Para assegurar a reeleição, como todo político faria, ele vai procurar fazer o máximo de alianças. Mas, por outro lado, para ter o apoio desse eleitor que confiou nele em 2002, terá que deixar claro qual é o seu programa de governo e qual é o seu programa de mudanças, em especial na política econômica.
 

ISTOÉ – O PT foi picado pela mosca azul ao chegar à Presidência?
Frei Betto

O núcleo dirigente do partido, representado pelo Campo Majoritário, sim.
E, aí, deu no que deu.

ISTOÉ – O Fome Zero deu certo?
Frei Betto

Muito mais do que o próprio governo anuncia. Uma das grandes falhas do governo é a comunicação, que, aliás, melhorou depois que o ministro [Luiz] Gushiken deixou o governo. O Fome Zero é melhor do que o governo. Durante os dois anos que lá trabalhei, acompanhei mês a mês as pesquisas de opinião sobre o governo Lula. Todas elas, sem exceção, mostravam que a melhor coisa do governo era o Fome Zero. Só que o governo não explorava isso na opinião pública. Não explorou que o programa reduziu a migração, a miséria e criou empregos no interior.

ISTOÉ – A culpa pela falta de comunicação dos êxitos do governo foi do ex-ministro Gushiken, é isso?
Frei Betto

Gushiken foi o responsável por isso. Eu sempre insisti junto ao presidente Lula que ele não era do ramo. A primeira propaganda do Fome Zero foi criação do Duda Mendonça sem consultar ninguém. O governo empregou publicitários que não aprenderam na escola a diferença entre publicidade e comunicação. Na publicidade você vende um bem material. Na comunicação, um bem simbólico. Tá aí o desastre. Simplesmente, quase não houve propaganda do Fome Zero.
 

ISTOÉ – Se foi um êxito, por que o sr. deixou o governo Lula?
Frei Betto

Em primeiro lugar, a minha vocação literária. Não conseguia compatibilizá-la com o poder público. Segundo, porque discordava e discordo da política econômica. Sendo eu uma espécie de caixeiro-viajante do governo, por causa da mobilização do Fome Zero, era obrigado a defender a política econômica. Não podia criticá-la em público e isso me constrangia. Eu disse ao Lula que não me sentia coerente. Escrevo dez artigos para jornais todo mês e isso estava me criando um problema de liberdade intelectual.