As edificações do Iraque ganharam sobrevida. Na semana passada era consenso, desde os labirintos do Pentágono, em Washington, até os corredores da Organização das Nações Unidas, em Nova York, que a guerra do Golfo, em segunda versão, começará pelo menos 15 dias mais tarde do que era previsto. Imaginava-se, até o discurso anual do presidente George W. Bush sobre o Estado da União, proferido na noite de terça-feira 28, que as bombas começariam a cair sobre Bagdá em meados de fevereiro. Até o relatório dos inspetores da ONU, apresentado na segunda-feira 27, parecia confirmar o cronograma inicial, atestava não ter encontrado evidências de que o regime de Saddam Hussein tenha se desfeito totalmente do seu arsenal de armas de destruição em massa. Mas o cronograma de ação preferido pela Casa Branca teve de ser recalculado devido a três motivos principais.

O primeiro, ressaltado pelo senador democrata John Kerry, seria a penúria financeira dos Estados, endividados até o pescoço. A economia está mal das pernas e a popularidade do presidente Bush – que chegou a 90% de aprovação depois de 11 de setembro – voltou a níveis pré-ataques terroristas, meros 58%. “O país já se pergunta se este George Bush não é igual ao outro George Bush, que parecia só dedicado à política externa, sem nenhuma percepção dos desacertos da agenda doméstica”, diz Kerry. Bush pai perdeu seu cargo porque não entendia, como seu sucessor, Bill Clinton, que era “a economia, estúpido!” que importava para os americanos. Mas Bush não quer repetir o mesmo erro e, antes de começar uma guerra, procurou mostrar que assa a sardinha ao mesmo tempo que vigia o gato; ou seja, o fato de querer derrubar Saddam não significa que não esteja atento à economia do país.

O segundo contratempo aos planos bélicos de Washington foi o lançamento, no palco internacional, da feroz oposição da França
à guerra-já. “Nada, mas nada mesmo, justifica uma guerra contra
o Iraque neste exato momento”, disse o ministro das Relações Exteriores da França, Dominique de Villepin. A frase, aliás, foi o belo touché na esgrima entre a diplomacia dos dois países. Na verdade, Villepin preparou uma emboscada para o secretário de Estado americano, Colin Powell.
Ao convocar uma reunião do Conselho de Segurança da ONU em que
a pauta trataria de “terrorismo”, o chanceler francês enveredou a falar
do Iraque e promoveu uma enérgica investida contra a guerra, deixando seu colega americano na defensiva e ganhando ouvidos e simpatias do resto do mundo. “As perguntas que se fazem são: por que não dar mais tempo aos inspetores para que terminem seu trabalho? Por que essa pressa em atacar?”, disse a ISTOÉ o diplomata russo Yuriy V. Fedotov,
da Comissão de Monitoramento, Verificação e Inspeção da ONU (Unmovic) no caso do desarmamento do Iraque.

Powell, considerado um pombo da paz em Washington, saiu da reunião do Conselho de Segurança transformado num autêntico falcão de guerra. Irritado com as manobras francesas, e, em menor grau, chinesas e russas, o secretário de Estado americano prometeu partir para o contra-ataque e saiu defendendo a guerra-já. Foi com o sangue quente que Powell e seus auxiliares no Departamento de Estado prepararam nova estratégia destinada a abater os pombos da paz franceses. Antes disso, porém, o governo Bush se viu na desconfortável posição de defesa no cenário internacional. “É lamentável que, num momento como este, as discussões joguem o holofote sobre Washington e aliviem a pressão sobre Bagdá”, disse a ISTOÉ uma fonte diplomática americana.

A manobra de Powell vai se valer, entre outros argumentos, do mesmo mote do terrorismo usado pelos franceses. Diante do Conselho de Segurança da ONU, na quarta-feira 5, o secretário americano vai acusar Saddam Hussein de estar em conluio com terroristas, incluindo membros da al-Qaeda. “Esta história é velha. Mas até agora ninguém foi capaz de provar nada”, diz Reinhard Böhrn, diplomata alemão, também da comissão da Unmovic. Lembre-se de que a Alemanha é outra ponta-de-lança dos que defendem a “guerra-depois”. Powell, no entanto, vai procurar calar a oposição revelando supostos novos dados de inteligência sobre esse casamento do terrorismo islâmico com Bagdá.

Provas? – No discurso do “Estado da União”, o presidente Bush já prometeu novas revelações sobre o belicismo iraquiano e sua sociedade com Osama Bin Laden. Antecipou que o secretário Powell colocaria a boca no trombone em 5 de fevereiro, na ONU. “Não cabia ao presidente fazer essas revelações no discurso sobre o Estado da União”, diz o senador republicano virginiano John Warner. Será Powell o porta-voz, portanto. Mas que ninguém espere grandes novidades. O que será exposto à apreciação pública é um colar de provas circunstanciais. Incluindo, talvez, a história do terrorista Abu Mussab al-Zarqwai, um palestino de 36 anos, graúdo nas fileiras da al-Qaeda. Segundo os serviços de inteligência americanos, al-Zarqwai é especialista em armas químicas e bacteriológicas. Powell vai revelar informações do MI6 (serviço secreto britânico), apontando responsabilidade intelectual desse homem nas tentativas recentes de envenenamento, com uma substância derivada do rícino, de alimentos das Forças Armadas de Sua Majestade. Antes disso, ele teria sido ferido no Afeganistão, entrado no Irã e escapado para o Iraque, onde amputou uma perna. Já andando rápido, ao pé da letra, foi para a Síria e depois para o Líbano. Estaria agora em meio a preparativos para atacar os Estados Unidos.

A se acreditar nisso, o governo americano teria justificativas para evocar o princípio da autodefesa e atacar antes que o inimigo o faça. Está aí um dos pilares do discurso de Bush no Congresso, na terça-feira. Aos seus compatriotas, ele descortinou um cenário apocalíptico de grupos terroristas usando aviões – ou outros meios de entrega – carregados de armas de destruição em massa, fornecidas por Saddam. Paranóia? Pode ser, mas os paranóicos também têm inimigos O vice-premiê iraquiano, Tarik Aziz, já disse a quem tem ouvidos que o Kuait será atacado, caso sirva de ponte de desembarque para tropas americanas em território de seu país. E mais: há mesmo quem duvide seriamente das intenções de guerra sem fronteiras de um Saddam Hussein acuado? Colin Powell usará isso junto ao Conselho de Segurança para justificar ação unilateral das forças americanas e britânicas.

Vai apelar também para discrepâncias entre os achados destes e
dos antigos investigadores da Unmovic. Estranha-se o sumiço – sem quaisquer justificativas apresentadas no documento de inventário do arsenal iraquiano recentemente entregue à ONU – de 30 mil ogivas que
o país possuía anteriormente. A novidade complementar é o silêncio, no mesmo relatório, sobre 500 toneladas de gás sarin, gás mostarda e do Agente VX (o chamado gás nervoso). O Iraque não consegue explicar como essa autêntica “nebulosa mortífera” evaporou de seu inventário. Esta pode ser a chamada “smoking gun”(a arma ainda fumegante do crime) na apresentação de Powell.

Será, espera-se, a cartada final para o terceiro item que pesou
na balança de um adiamento do soar das trombetas da guerra. Ela
busca colocar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, do mesmo lado
das trincheiras de uma coalizão contra Saddam. “Vamos precisar de alguma prova concreta para apoiar uma ação americana”, disse a
ISTOÉ o diplomata Fedotov. Ele ecoa as súplicas de seus patrícios
no Kremlin. Putin deu indicações de que não vetará no Conselho
de Segurança da ONU um pedido de ataque americano, caso sejam apresentados dados concretos de inteligência, provando que
Saddam tem armas escondidas na algibeira.

Aliado poderoso – Para George W. Bush, essa repentina boa vontade russa é, digamos, um mamão com mel. Não apenas retira um suporte do chamado “eixo do mole” (França, China e Rússia, que defendem moleza para Bagdá), mas também ganha um aliado poderoso. “Imaginamos que
os russos vão ter uma participação, ainda que periférica, bem como
o fornecimento de dados de inteligência privilegiada que Moscou tem sobre o Iraque. Saddam perderia, assim, um antigo e importante aliado.
E se as duas maiores potências nucleares do mundo concordam em
um determinado ponto, quem poderá discordar?”, diz uma fonte de
ISTOÉ no Pentágono. A França, neste caso, terá sua vez de ficar pendurada na brocha de sua grandeur. Já Saddam terá sorte se
for apenas pendurado na ponta de uma corda.