Muito mais do que o espelho, muito mais do que aquela calça que só fecha se deitarmos na cama, acompanhar uma competição como o Pan é o início da desunião da gente com o nosso próprio corpo. E, como estamos no México, esse desencontro pode ir além dos evidentes parâmetros estéticos.

Começamos nossa segunda manhã em Guadalajara nos refestelando no bufê de café da manhã do hotel, que achávamos estar incluído na diária. Além de frutas picadas, café e duas variedades de pão, havia ali réchauds com um feijão aparentado do tutu, pedaços de carne de porco, vegetais refogados – naquele ponto em que só uma respiração boca a boca poderia ressuscitá-los – e uma omelete multiétnica.

Bem mais corajoso que eu, o fotógrafo e parceiro João Castellano optou por juntar feijão e omelete no prato. Na primeira garfada, ele já adquiriu aquele vermelho característico das freiras que, inadvertidamente, vão parar em uma praia de nudismo. “Tem pimenta nessa p…”, conseguiu balbuciar. Depois de apagar o incêndio bucal, chamou a garçonete, explicou a sua inaptidão para lidar com a ardência e, brilhantemente, resumiu: “No posso con nada que pica”. A moça entendeu o problema e passou a relacionar a meia dúzia de opções mais domesticadas no cardápio.

De café tomado e pago, pegamos o carro, os mapas e retomamos a nossa batalha contra a falta de simetria das ruas e avenidas da cidade. Nosso destino: o Centro Aquático Scotiabank, que vai abrigar as provas de natação e saltos ornamentais.

Lá chegando, gastamos algum tempo renivelando os nossos queixos, caídos diante da elegância da construção. Aquilo não era notícia. Tava bonito demais para um jornalista e um fotógrafo interessados em mostrar os atrasos na organização do Pan. Bom, depois que entramos no lugar, encontramos o que procurávamos (mas isso você vai ter de comprar a ISTOÉ desta semana para descobrir).

Encontramos também atletas de ambos os sexos e de vários países investigando as águas, checando a elasticidade dos trampolins e calculando quantas piruetas são possíveis entre a plataforma e a água. Faziam tudo isso desavergonhadamente emoldurados por sungas e maiôs. Enquanto o Castellano colhia as imagens para sustentar a nossa tese e eu conversava com o responsável pela organização das provas aquáticas, vez por outra eu olhava aquele desfile de corpos irretocáveis e pensava: “Tudo bem, vocês estão com tudo em cima… Mas não escrevem na ISTOÉ”. O efeito disso na auto-estima foi próximo de zero. E assim, um tanto cabisbaixos e de barriga encolhida, repórter e fotógrafo se retiraram.

Próximo compromisso: visitar o Estádio de Atletismo Telmex. De tão inacabado, ele nos ofereceu o conforto de saber que não encontraríamos atletas e seus corpos. Em vez disso, deparamos com um operário vestido de Batman do lado de fora da arena. Paramos o carro ali mesmo. Aquela imagem tinha de ser preservada. Descemos, conversamos com os operários e fomos até a direção da porta do estádio. Mas algo surreal aconteceu.

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Como disse na coluna anterior, chove sem parar em Guadalajara. E a área em torno do estádio é uma lama só. Logo depois de nos despedirmos dos trabalhadores, dei dois passos e pisei numa lama fofa. Muito fofa. Tão fofa que afundei até os joelhos. Enquanto descia, a primeira memória que me passou pela cabeça foi a dos filmes de Tarzan e suas gulosas areias movediças. Depois, mais calmo e com o humor semi-recuperado, pensei que era assim que os bonecos de bolo de noiva se sentiam. O saldo foi um par de meias perdido e a necessidade de lavar calça e sapatos. Moleza, não fosse o fato de todas as torneiras do estádio estarem sequíssimas. Mas, lembre-se, chovia. Aproveitei uma das várias goteiras para tirar o grosso do barro e parar de chamar a atenção dos trabalhadores, que davam um tempo na urgência para mirar o brasileiro com pés de barro.

 

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Uma passada pelo hotel se fez necessária. Até porque naquele final de tarde iríamos ao centro de imprensa, no imponente prédio do Expo Guadalajara.

Jornalista brasileiro se encontrando no exterior é uma festa digna de estudo psicológico. Como explicar o abraço caloroso daquela moça com quem, a custa de muito esforço, você só havia conseguido trocar duas levantadas de sobrancelha durante o tempo em que trabalharam juntos? Pois é, somos os melhores amigos do mundo quando estamos no estrangeiro. Passamos várias horas no centro de imprensa trabalhando, confraternizando, trocando figurinhas e, nas despedidas, ouvindo aquele cipoal de “precisamos combinar”, “você está de rádio?”, “me procura no Facebook” e outras juras de amizade eterna do gênero.

A noite de trabalho se estendeu até as 22h. Cansados, com fome e ainda um tanto assustados com o entrevero policial da noite anterior, decidimos passar no Walmart, comprar algumas guloseimas e ir para o hotel dormir. E foi assim, com o criado-mudo encimado por um pacote de batatinha sabor jalapeño e uma embalagem de Kit Kat, que eu peguei no sono. Profundo, com direito a um sonho em que eu acordei com o corpo do Cielo.