O sonho de voar não começa com o compositor e cantor Biafra (“voar, voar, subir, subir, ir por onde for…”). Nem com Santos ­Dumont ou os irmãos Wright. Tampouco com o padre Bartolomeu de Gusmão, pioneiro que deu os primeiros passos – digo, voos – no projeto do balão a gás, bem lá atrás, ainda no comecinho do século XVIII. Nem teve início com Ícaro, personagem da mitologia grega que voou com asas de cera, mas não resistiu à tentação infantil (e demasiadamente humana) de se aproximar do Sol, e por isso teve as asas derretidas. O sonho de voar nasce com o primeiro homem, assim como a ambição da arte, sendo ambos (o voo e a criação) projetos surgidos da insatisfação inerente à raça humana, do desejo de ir além de nosso pequeno destino.

Heróis que voam há às centenas no imaginário pop – do Super-Homem ao Homem-Aranha (ok, não voa, mas se pendura em teias no ar); do Homem-Pássaro ao Surfista Prateado (tá bem, não voa, mas surfa no éter). Há ainda os personagens que não voam, mas usam apetrechos para tal empreitada, e aqui é quase impossível não lembrar – com inevitável ternura – da família futurista criada nos anos 60 pelos gênios da animação William Hanna e Joseph Barbera: “Os Jetsons”. Sucesso no Brasil entre os anos 60 e 80, o desenho da simpática família foi certeiro em suas despretensiosas “profecias”. Pois os Jetsons locomoviam-se em esteiras rolantes, tinham uma robô como empregada doméstica e andavam em veículos que voavam a uma razoável altura. Todas, ideias hoje plausíveis e não tão absurdas assim. Também em “De Volta para o Futuro”, Michael J. Fox subiu aos ares no seu Delorean, varando as eras num voo delirante – outra fantasia recorrente do homem, esta de se teletransportar de uma época a outra.

Não duvido que estejamos chegando perto de realizar algumas dessas antigas fantasias humanas. E o anúncio do projeto Matternet, um carro que voa, é a prova inconteste do avanço científico nesse departamento. O projeto surge com destinação assistencialista e começa a ser formatado – pasmem! – no Haiti, com apoio da vizinha República Dominicana. Segundo seus idealizadores, o propósito é ter acesso a áreas inóspitas como a área rural africana e lugares devastados por catástrofes (como o próprio Haiti) para levar medicamentos e mantimentos aos necessitados. Prometem para 2012 uma versão aperfeiçoada do atual protótipo, que já tem experimentado seus primeiros rasantes.

Apesar do objetivo nobre, temo que a sanha industrial e consumista absorva o projeto. Já vislumbro assim – não eu exatamente, mas minha porção mais pessimista – um pequeno inferno congestionado a meia altura do solo, com motoristas voadores estressados querendo sair no braço sem pisar o chão. Imagino a cena de cinema americano de quinta: a Marginal Tietê tomada por carros planando a alguns palmos de nossa cabeça, pra lá e pra cá, num caos de arrepiar, ruidoso e ameaçador. Claro que não precisarão disputar espaço com helicópteros e aviões, que ocuparão faixas mais altas do espaço aéreo. E pensar que há cerca de 150 anos o poeta romântico baiano Castro Alves decretara que “a praça é do povo como o céu é do condor”. A praça há tempos não é mais do povo. E o céu já parece ter outros donos.