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O escritor russo naturalizado americano Vladimir Nabokov tinha 31 anos e morava na Alemanha quando escreveu “O Olho” (Alfaguara), seu quarto romance. Ele vale-se de procedimentos detetivescos para narrar a trajetória de Smurov, também um jovem imigrante russo que se oferece para ­trabalhar como tutor de duas crianças na mesma Berlim dos anos 1920. No prefácio do ­livro, Nabokov afirma que esses expatriados eram os personagens que mais o fascinavam no início de sua carreira – e isso fica claro pela engenhosidade com que acompanha o infortúnio do solitário Smurov, submetido a humilhações após se envolver com uma mulher ­casada.

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Leia um trecho do primeiro capítulo:
 
Conheci aquela mulher, aquela Matilda, durante
o primeiro outono de minha existência como
émigré em Berlim, no começo da década dos vinte
de duas contagens de tempo, a deste século e a de
minha torpe vida. Alguém tinha acabado de me
arrumar um emprego como tutor domiciliar de
uma família russa que ainda não tivera tempo de
empobrecer e subsistia na fantasmagoria de seus
antigos hábitos de São Petersburgo. Eu não tinha
nenhuma experiência na educação de crianças —
não tinha a menor ideia de como me comportar
e do que falar com elas. Eram duas, ambos meninos.
Na presença deles eu sentia um humilhante
constrangimento.

Eles contavam os cigarros que eu fumava
e essa branda curiosidade me fazia segurar meu
cigarro num ângulo estranho, desajeitado, como
se eu estivesse fumando pela primeira vez; ficava
derrubando cinzas em meu colo e o olhar límpido
deles passava atentamente de minha mão para o
pólen cinza-claro que gradualmente se impregnava
na lã.

Matilda, uma amiga dos pais deles, os visitava
com frequência e ficava para jantar. Uma noite,
quando ela estava saindo e chovia ruidosamente,
emprestaram-lhe um guarda-chuva e ela disse:
“Que bom, muito obrigada, o jovem vai me acompanhar
até em casa e traz de volta.” A partir desse
momento, acompanhá-la até em casa passou a ser
um de meus deveres. Creio que ela me era bem
atraente, aquela dama roliça, desinibida, de olhos
bovinos, com sua grande boca que se fechava num
bico carmesim, um quase botão de rosa, quando
ela olhava no espelho de bolso para empoar o rosto.
Tinha tornozelos finos e um andar gracioso,
que compensavam muitas coisas. Ela exsudava generosa
cordialidade; assim que aparecia, eu tinha a
sensação de que o aquecimento da sala tinha sido
aumentado, e quando, depois de me livrar dessa
grande fornalha viva ao acompanhá-la até em casa,
eu voltava caminhando sozinho por entre os sons
líquidos e o brilho mercurial da noite impiedosa,
eu sentia frio, frio a ponto da náusea.