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O cinema brasileiro foi sacudido em 1962 pela luz que alguns jovens de classe média jogaram sobre o cotidiano dos morros do Rio de Janeiro. Era lançado o filme “Cinco Vezes Favela”, nascido de um projeto da União Nacional dos Estudantes, que usava a cultura como ferramenta política. Entre os rapazes que dirigiram os episódios que formaram a obra, três alcançaram o estrelato nos anos seguintes: Leon Hirzman, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá Diegues. Agora, 47 anos depois, olhos e câmeras se voltam mais uma vez para essas comunidades carentes, em uma empreitada com semelhante potencial de renovar a cinematografia nacional. Idealizado por Cacá Diegues, o filme “Cinco Vezes Favela – Agora por Nós Mesmos” está em fase de edição. Como indica o subtítulo, a grande diferença da obra atual é que os autores são pessoas que nasceram e vivem nas favelas cariocas. Essa mudança de perspectiva traz muitas inovações e a principal é destacada pelo condutor do projeto. “Enquanto nós do asfalto, com todos os recursos, vivemos anunciando o apocalipse, eles que moram nessas comunidades esbanjam bom humor e esperança”, sublinha Diegues.

 

O diretor diz que o cinema nacional já mostrou a favela pelo ângulo dos traficantes e dos policiais. “Faltava os moradores darem a sua versão”, acredita. Por envolver diretores iniciantes, oriundos dessas comunidades, ele faz questão de destacar que o filme tem alto nível profissional. “Isso não é uma operação de benemerência ou uma ação social”, diz Diegues. “É uma obra de qualidade que busca cativar o público e ganhar prêmios nacionais e internacionais.” Foi ele próprio que escolheu entre 603 candidatos os sete diretores dos cinco episódios. Todos passaram por um extenso trabalho de preparação no qual profissionais do cinema lhes deram aulas. Recrutados em ONGs e iniciativas sociais que trabalham com arte em comunidades carentes – como Central Única das Favelas, Observatório de Favelas e Nós do Morro –, eles já tinham alguma experiência, mesmo que amadora, com a tela grande. “Tem muita gente talentosa nessas áreas carentes, uma turma sem condições técnicas nem financeiras de executar seus planos”, avalia Diegues. Sua intenção foi dar a esses garotos o instrumental necessário para realizar da melhor forma possível a ideia que eles tinham na cabeça.

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Os novos cineastas confirmam que ficaram à vontade. “Uma vez, quando estava no set, Cacá sugeriu que enquadrasse a cena de uma forma diferente. Agradeci a orientação, mas mantive a minha ideia”, diz Cadu Barcellos, 22 anos, um dos novos diretores. “Mas é claro que muitas vezes concordei com ele e suas orientações melhoraram o resultado.” Morador da favela da Maré, onde nasceu, Barcellos começou a se interessar por cinema graças às aulas que teve numa ONG local. “Eu, que sempre fui espectador da luz que saía da tevê e da tela do cinema, agora vou poder reluzir também”, define. Os novos diretores tiveram liberdade para escolher o tema que quisessem. “Num debate, me disseram que, por ser moradora de uma comunidade carente, não deveria colocar polícia no filme para não reforçar estereótipos”, recorda Luciana Bezerra, 34 anos. “Pois numa obra de arte abordo o que quiser.” Ela dirigiu um episódio baseado em seu próprio roteiro, uma espécie de conto de Natal adaptado para a favela. Depois de participar como atriz do projeto Nós do Morro, no Vidigal, ela acabou se encantando pelo cinema. Admite, no entanto, que a adrenalina sobe na hora das filmagens. “Gostaria de tirar o stress daquele momento, mas, por outro lado, me alimento dessa tensão.”

Os sete diretores tiveram aulas com nomes consagrados como Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles, Daniel Filho, Walter Lima Jr. e outros. Além disso, as noções de figurino, cenário, iluminação e fotografia foram dadas por técnicos experientes. Alguns profissionais consagrados também participam do filme, como Hugo Carvana e Ruy Guerra. Os cinco episódios (“Arroz com Feijão”, “Deixa Voar”, “Acende a Luz”, “Fonte de Renda” e “Concerto para Violino”) revelam tramas e estilos bem diferentes. “Acho que todas as histórias falam de dramas e dilemas comuns a qualquer ser humano, não apenas aos moradores da favela”, afirma Luciano Vidigal, 30 anos, um dos diretores. Por tudo isso, Diegues acha que “Cinco Vezes Favela – Agora por Nós Mesmos” pode ser o marco de um novo caminho no cinema brasileiro. Comemora também a possibilidade de mostrar o trabalho desses novos talentos a um público mais amplo, que talvez nunca os conheceria se essa iniciativa não tivesse existido. Sabe, porém, que isso não representa que eles já tenham garantido os seus espaços definitivamente. “É uma trajetória difícil, como é para qualquer cineasta”, acredita Diegues. “Mas uma coisa é certa: eles agora estão no mercado.”/wp-content/uploads/istoeimagens/imagens/mi_1711049867614435.jpg