Na primeira vez que uma emissora brasileira ousou transmitir uma novela com um protagonista
negro, o ator branco Sérgio Cardoso foi escalado para o papel. Hoje, 35 anos após a estréia de A cabana do Pai Tomás, a escolha despertaria tamanho rebuliço que, provavelmente, a produção seria abortada antes mesmo do primeiro capítulo. Se o Brasil ainda amarga uma situação de extrema desigualdade racial – e a televisão é infinitas vezes mais branca do que a população –, não faltam indícios de que mudanças importantes começam a acontecer. Pela primeira vez, o Brasil conta com quatro ministros e um juiz do Supremo Tribunal Federal negros, possui uma secretaria especial dedicada à promoção da igualdade racial e, vencendo um preconceito que perpassa toda a história da mídia no País, uma atriz negra assumirá pela primeira vez o papel de protagonista em uma novela da Rede Globo. Para Taís Araújo, Da cor do pecado – que estréia na segunda-feira 26 – tem sabor de realização. Em 1996, a atriz conquistou o público com Xica da Silva na produção homônima da extinta TV Manchete. A diferença, comemoram os ativistas, é que, desta vez, não se trata de um personagem histórico, inserido no contexto da escravidão.

Aos 25 anos, Taís viverá a feirante maranhense Preta, que desperta a paixão do botânico carioca Paco (Reynaldo Gianecchini), herdeiro de uma grande fortuna. Para viver sua história de amor, o casal terá de superar as investidas dos personagens de Giovanna Antonelli, que faz a noiva do galã, e de Jonathan Haagensen, na pele do ex-namorado de Preta. Com um currículo de sete novelas, três filmes e cinco peças de teatro, essa carioca de sorriso largo aproveita para dar seu grito de liberdade. “Chega de interpretar papéis secundários. Já estava mais do que na hora de sermos reconhecidos como parte significativa da cultura brasileira. Espero que não demore 20 anos para outro ator negro ter novamente um papel principal”, alerta a atriz.

A atual lua-de-mel de Taís Araújo com a tevê é apenas a ponta do iceberg. O movimento de afirmação da população negra na teledramaturgia brasileira existe há quase 40 anos. No livro A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira, o cineasta Joel Zito Araújo, doutor em ciências da comunicação, mostra que foi preciso muita luta para que, aos poucos, o negro ganhasse espaço na telinha. “Da cor do pecado ainda é exceção. Quando um negro aparece em uma novela, o público encara como uma medida politicamente correta, e não como natural”, diz ele. Sueli Carneiro, diretora do movimento de mulheres negras Geledés, lembra que Taís Araújo foi para a Globo depois do sucesso de Xica da Silva e teve de esperar anos para ter um papel de destaque. “A emissora tem uma dívida para com 50% da população, que raramente se vê retratada de forma justa. A escolha da atriz é uma conquista”, diz ela. A própria Globo comemorou nas páginas dos jornais a escalação do primeiro apresentador negro do Jornal Nacional, o jornalista Heraldo Pereira. E ele só cobria férias.

Da mesma forma, é saboreado o sucesso de atores como Jonathan Haagensen, 20 anos, e Sérgio Menezes, 31. O primeiro despontou no papel de Cabeleira no filme Cidade de Deus e conseguiu trocar os papéis marginais por um personagem central. Na nova trama global, ele vai disputar com Paco o amor de Preta. “O fato de eu ser negro não deveria ser motivo de tanta especulação. Quero ser visto como um bom ator, e não como um bom ator negro, o que é diferente”, diz Haagensen. Sérgio Menezes, que vive o fotógrafo Bruno Carvalho em Celebridade, tem consciência de que seu papel contribui para a luta contra o racismo. “Quando saímos do quarto de empregada e ganhamos destaque, melhoramos a auto-estima da população. Para uma criança negra e pobre, é positivo ver um negro bem-sucedido”, diz o ator. O personagem de Menezes teve um caso com a vilã Laura, interpretada pela loira Cláudia Abreu. As transas do casal não causaram polêmica, mas quebraram um tabu de duas décadas. O ator talvez não se lembre, mas, em 1985, Zezé Motta foi vítima de uma chuva de protestos por interpretar a namorada de um personagem branco (Marcos Paulo) em Corpo a corpo. “Diziam que Marcos Paulo deveria estar precisando muito de dinheiro para aceitar me beijar na boca”, comenta Zezé.

Capa

Status – A carioca Cristiane Sobral, 28 anos, primeira atriz negra formada em artes cênicas pela Universidade de Brasília (UnB), considera que ninguém nasce racista, mas é influenciado pela mídia. “O negro acaba desconfiando dele mesmo quando vê tão poucos negros em posições de sucesso”, opina ela. Para muitos, só existe uma forma de garantir que o negro ganhe mais status na tevê: uma política de cotas. A proposta, aprovada pela Comissão de Ciência, Tecnologia e Comunicações da Câmara dos Deputados em 2002, é do senador Paulo Paim (PT-RS). Sua sugestão é de que toda produção nacional seja obrigada a contar com 25% de negros. “Os meios de comunicação devem combater o racismo, pois têm a obrigação de educar”, justifica ele. A historiadora da Universidade de São Paulo e presidente da Associação de Cultura Dombali, Regina dos Santos, chega a defender a criação de uma televisão feita apenas por negros. “Há mínima representação na mídia. Quando acontece, é com contornos construídos pelo preconceito”, discursa.

Orgulho – Há, no entanto, uma mudança sutil quando se fala em orgulho da raça. A cor da pele hoje acanha menos. Uma pesquisa realizada no ano passado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o instituto alemão Rosa Luxemburg Stufting mostrou que, de 1995 para cá, o porcentual de pessoas que se consideram de cor preta ou parda passou de 46% para 50% da população. Considerando-se apenas os que se declararam de cor preta, houve um saltou de 6% para 15%. De forma mais modesta, o mesmo quadro é apontado pela comparação entre os censos demográficos de 1991 e 2000. Nesse período, a população que se autodefine como preta cresceu duas vezes mais do que a que se declarou branca e oito vezes mais do que a parda (em 2000, eram 6,2% de pretos, 38,4% de pardos e 53,7%, brancos). Os relacionamentos interraciais também crescem. Segundo o IBGE, uniões entre brancos e negros representavam 1,3% do total de casamentos em 1991 e, em 2000, 2,6%. O número ainda é pequeno e confirma a existência de um apartheid racial não-declarado. Mas um crescimento de 100% em menos de dez anos aponta uma revolução silenciosa.

Formadores de uma classe média crescente, mas significativa, os negros conseguiram reverter o ostracismo a que estavam condenados pelo mercado. De dez anos para cá, diversos setores passaram a investir nesse segmento. O lançamento sda revista Raça (editora Símbolo), há sete anos, é um sinal desse processo. Até hoje é a única destinada ao público negro. Com circulação bimestral e tiragem média de 60 mil exemplares, Raça prepara a sua jogada mais ousada. “A partir de abril passaremos a ser mensal e esperamos dobrar a tiragem”, diz Conceição Lourenço, diretora de redação da revista.

Mercado negro – No ramo de higiene pessoal e beleza, a oferta de produtos é imensa. De 1999 para cá, a Unilever, gigante do setor, colocou no mercado quatro produtos especialmente elaborados para negros: o hidratante Vasenol para pele morena e negra, a linha para cabelos Seda Keraforce, o sabonete Lux Beleza Negra e o desodorante Rexona Ebony, lançado há cinco meses com um investimento de R$ 8 milhões. Outra empresa do ramo, a Shizen, oferece desde abril do ano passado a linha Essenza, para tratamento capilar, que responde hoje por 5% de seu faturamento no País e por 25% em São Paulo.

Segundo números da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal e Cosméticos, o mercado de produtos de higiene e beleza faturou R$ 25 bilhões no ano passado. Destes, R$ 1,3 bilhão refere-se a produtos étnicos. Com isso, era de se esperar que a publicidade reagisse à demanda e promovesse uma presença cada vez maior de modelos negros nos comerciais. “Um negro na tela evoca a identidade brasileira, a beleza estética e a diversidade”, elogia Jaques Lewkowicks, sócio-diretor da agência de publicidade Lew, Lara.

Na última edição do Elite Model, o importante concurso de modelos promovido pela agência de mesmo nome, o segundo lugar ficou com a negra Rojane Fradique, 17 anos. Em poucos meses de profissão, a baiana caiu nas graças de Paulo Borges, organizador da São Paulo Fashion Week, e logo fotografou para a Vogue Brasil e virou garota propaganda dos calçados Arezzo. “A cada nova temporada de desfiles, surge pelo menos uma nova modelo negra”, afirma Renato Júnior, agente da Elite. “Muitos me desencorajavam a seguir a carreira, mas não desisti. Hoje, sei que estou no caminho certo”, garante a modelo.

A situação social do negro no Brasil ainda está longe de ser a ideal. Os números colocam o País como a segunda nação negra do mundo, atrás apenas da Nigéria, que tem quase 120 milhões de habitantes. São 76 milhões de negros no Brasil (45% da população), 10,4 milhões pretos e 66 milhões pardos. Nesse gigantesco universo, os indícios de desenvolvimento econômico são tímidos, conforme mostram os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O salário médio do negro, por exemplo, aumentou apenas R$ 4 entre 1995 e 2001. Passou de R$ 201 para R$ 205, compensada a inflação. Os brancos continuam recebendo, em média, mais do que o dobro. A taxa de negros analfabetos também melhorou, mas ainda impressiona. Dos negros com mais de quinze anos, 26% não sabiam ler em 1992. Nove anos depois, eram 18%. O tempo médio que pretos e pardos passam na escola subiu de 3,6 anos em 1992 para 4,7 em 2001. Os sinais de evolução da inclusão de negros nas universidades públicas são sutis. Se eles eram 2,6% dos estudantes que realizaram o Provão em 2001, passaram para 4% em 2003. “Todos os índices melhoram, mas a distância que separa negros de brancos ainda é grande. Há necessidade de políticas para valorização do negro no Brasil”, diz Nathalie Beghin, economista e pesquisadora do IPEA.

Multirracial – O governo tem tentado. Para elaborar e supervisionar políticas públicas de afirmação do negro, foi criada pelo governo Lula a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, com status de ministério. “A criação da pasta indica o reconhecimento oficial de que o racismo existe e precisa ser combatido. Temos debatido a questão das cotas nas universidades e implementado leis como a que obriga o ensino de história da África nas escolas”, diz a secretária Matilde Ribeiro. Ao lado de Matilde, compõem o ministério de Lula outros três negros: Gilberto Gil, Benedita da Silva e Marina Silva. Isso faz da equipe a mais multirracial da história. Todos os escolhidos para os ministérios têm um passado de luta. Joaquim Benedito Barbosa, por exemplo, é o primeiro negro do Supremo Tribunal Federal. Em maio do ano passado, já escolhido pelo presidente Lula para integrar o Supremo, o então procurador da República foi barrado na entrada do STF, quando entrava no palácio para a posse do novo presidente do tribunal, Maurício Corrêa. Um assessor o reconheceu e livrou-o do vexame de ter que mostrar documentos aos seguranças. “Vivo em ambientes brancos. É desconfortável ser olhado com estranhamento, embora às vezes isso ocorra”, admite ele. Quando fazia doutorado em direito na França, um ministro do Supremo francês lhe perguntou quais seriam suas chances de chegar ao topo da carreira. A resposta foi simples: “Nenhuma.” O amigo foi um dos primeiros a ser informado de sua nomeação.

Ações afirmativas

Também nos meios acadêmicos, a valorização do negro e o resgate de sua cidadania começam a migrar do mundo das idéias para a realidade. Ainda este mês, o presidente Lula deve assinar uma medida provisória que estabelece o sistema de cotas para negros e afro-descendentes nas universidades públicas federais e nos centros federais de educação tecnológica. Além disso, em São Paulo duas faculdades foram abertas com foco único nas questões da inclusão e da valorização da cultura afro-brasileira. Uma é a Faculdade de Administração Zumbi dos Palmares, criada pela sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (Afrobrás), a primeira instituição a ter em suas salas preferencialmente alunos negros. A outra é a Faculdade de Teologia Umbandista, que se dedicará a difundir positivamente esta opção religiosa, que mistura rituais africanos e indígenas a crenças católicas. Serão 50 vagas para o curso que dura cinco anos. “Queremos livrar a umbanda do preconceito que sempre sofreu”, diz Marcelo Riggi, doutor em filosofia pela USP e coordenador do curso.

A lei federal, no entanto, deve gerar polêmica. Pôde-se ver uma amostra da reação da sociedade no ano passado quando o sistema de cotas para negros foi implementado em alguns Estados. Houve quem alegasse que o sistema não era justo, já que com a divisão do número de vagas muitos estudantes brancos com altos índices de acerto no vestibular ficariam fora da universidade. Outros defenderam ainda que o sistema deveria premiar os pobres, independentemente da cor da pele. Discussões à parte, a lei deve entrar em vigor este ano e, de acordo com a secretária especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, não vai ditar o porcentual exato de cotas. “As universidades deverão fixá-lo de acordo com a demanda de sua região. O importante é que as ações afirmativas sejam implementadas”, afirma a secretária.

Greice Rodrigues e Juliana Vilas