Nos boxes, poucos metros separam
o Porsche GT 3, seis cilindros, 420 cavalos – da estruturada equipe
Denner Motorsports – do velho Voyage equipado com o antigo motor AP 2000
de Eduardo Celidônio. Mas a distância técnica e cronológica entre o puro-sangue alemão e o ultrapassado exemplar brasileiro é justamente
o que faz o charme das Mil Milhas, a prova mais tradicional do automobilismo brasileiro. Nas mais de 12 horas da
31ª edição da corrida, disputada
com chuva na madrugada e manhã
do domingo 25 no autódromo de Interlagos, em São Paulo, poderosos Porsches, BMWs e Audis dividiram
os 4.300 metros de pista com obsoletos, porém envenenados, Gols, Opalas e Escorts. A diversidade não se restringe às máquinas. A corrida reúne verdadeiras lendas do automobilismo com gente que ainda se arrepia ao ouvir ronco dos motores.

O primeiro da turma dos mitos é Breno Fornari, 77 anos. Este simpático gaúcho de Triunfo, ao volante de uma Carreteira Ford, carro que fez história entre as décadas de 40 e 60, venceu a primeira Mil Milhas. A conquista, em 1956, ainda está fresca na memória desse senhor que veio a Interlagos dar uma mão aos filhos Neco e Nenê. “Receber o troféu foi o máximo. Em Porto Alegre, fui recebido até por Brizola, na época governador do Rio Grande do Sul.” Fornari faz uma viagem no tempo para relembrar o romântico e um tanto perigoso Interlagos dos anos 50 e 60. “Era um macigão (descampado, no bom gauchês). Vi pilotos atropelarem cavalos que invadiam a pista. Tinha carro que amanhecia pendurado em árvore”, conta Fornari. A prova atraía uma multidão. “O pessoal fazia churrasco. Era uma festa”, diz Fornari, vencedor de três Mil Milhas.

Eduardo Celidônio estranhou o pequeno público que acompanhou a corrida deste ano. Mas esse não foi o único fator de espanto do piloto de 59 anos, o mais velho competidor na prova. Vencedor da corrida de 1966, quando dividiu uma Carreteira Corvette com Camilo Chirstófaro, outra lenda, o hoje dono de um cemitério em Maringá (PR) não gostou do que viu. “Estou apavorado. Faz 15 anos que eu não piloto. A pista não tem sinalização e está chovendo”, dizia, antes da largada. Celidônio e seus dois parceiros ficaram a pé. No meio da madrugada, o câmbio do Voyage engripou e a equipe foi dormir mais cedo. Situação bem distinta da vivida 37 anos antes. “Naquela corrida, nosso carro liderava quando acabou a gasolina. Reabastecemos e, na última volta, colei na traseira do DKW Vemag do Emerson Fittipaldi. Na curva da Ferradura, consegui ultrapassá-lo e vencemos a corrida. Foi uma sensação única na vida. No pódio, o Emerson chorava. O Camilo bateu
no ombro dele e disse: “Garoto, não chora, você ainda vai longe.”
O resto da história todo mundo conhece.
 

E por falar em vitórias, este ano Interlagos teve o prazer de receber o senhor Mil Milhas. Zeca Giaffone, 54 anos, venceu nada menos do que cinco provas. Mas dessa vez chegar na frente era o que menos importava. A grande felicidade do veterano, hoje empresário, era correr ao lado do filho Felipe, piloto da Indy Racing League (IRL). Zeca e Felipe dividiram o carro com Flávio de Andrade e Ruyter Oliveira. Quando Zeca assumiu o volante, precisou dos conselhos do filho. “Pois é. Passei a vida inteira dando aulas ao moleque. Agora, eu é que tenho que aprender”, divertia-se o ex-piloto, que sonha vencer uma corrida ao lado do filho. Não foi desta vez. O carro do quarteto chegou em sexto.

Nesse verdadeiro túnel do tempo que são as Mil Milhas, a Dener Motorsport representa o futuro. A mais estruturada das equipes não economizou esforços e dinheiro para vencer. Seus dois Porsches GT 3 foram preparados pela divisão de competição da fábrica alemã. Talvez só a F-1 tenha equipamentos mais atualizados. Por um sofisticado sistema de telemetria, os técnicos da Denner monitoram, via boxe, todo o desempenho do carro. Dener Pires, chefe e dono da equipe, não tirava os olhos do laptop, no qual aparecem dados a respeito de consumo de combustível, sistema de freios, temperatura do motor, pressão do óleo e funcionamento do câmbio. Mas no automobilismo nem sempre sofisticação é sinônimo de bom resultado. Com pouco menos de duas horas de prova, uma batida no S do Senna acabou com as ilusões de seu quarteto de pilotos, que contava com o apresentador da Rede Bandeirantes Otávio Mesquita. Na hora do acidente, o carro estava sendo guiado por Arthur Bragantini. O outro Porsche da equipe, que teve entre seus pilotos o experiente Raul Boesel, apresentou um defeito no macaco pneumático. Resultado: outro Porsche, que tinha entre seus pilotos o campeoníssimo Ingo Hoffman, levou o troféu. Vencer é legal. Mas o que interessa mesmo nas Mil Milhas é acelerar e se divertir. Afinal, como dizia a placa pendurada no boxe 21, “quem gosta de motorzinho é dentista”.