Atire o primeiro sabonete quem não se imaginou, pelo menos uma vez, “o dono da voz” embaixo do chuveiro. Cantar, tocar um instrumento ou atrair uma legião de fãs para uma novela podem ser apenas sonho para grande parte das pessoas. Falta talento, alegam. Encantados com o sucesso de pequenos prodígios, muitos encontram resignação no velho bordão: “Não tenho o dom.” Para o senso comum, o talento em qualquer área de atividade – principalmente na artística – tem algo de mágico, de misterioso. Fica no ar a pergunta: “Como ele consegue?” O dicionário tenta explicar o talento. Além de ser o nome de antigas moedas gregas e romanas, o termo pode ser traduzido como aptidão natural ou habilidade adquirida. A ciência vê diferente. Talento é resultado da combinação de predisposição biológica e estimulação do ambiente, temperado com aspectos da personalidade, como perseverança e curiosidade. “Parece que a pessoa vinha passando, subiu no palco e começou a tocar, cantar ou a interpretar por encanto. Não é assim. É preciso levar em conta as características pessoais na formação do sistema nervoso, mas a maioria delas se desenvolve a partir de estímulos externos”, ensina Gilberto Xavier, professor de neurofisiologia do Instituto de Biociência da Universidade de São Paulo.

Não há um gene especial para as artes. Tudo depende da trajetória
de cada um. Os pequenos eventos, os hábitos a que a criança foi exposta desde pequena e, claro, as aulas e projetos pedagógicos
a que se submeteu contam pontos na formação do talento. Toda
vez que a gaúcha Elenara Singer colocava um disco da Eliana e repetia
as coreografias para a filha de dois anos, proporcionava um curso de interpretação para Cecília Dassi, hoje uma talentosa atriz de 13 anos. Muito antes de viver a adolescente Bia em O Beijo do vampiro, Cecília estreou no palco imitando a apresentadora infantil. “Uma amiga da
minha mãe fazia desfiles em Esteio, no Rio Grande do Sul. Quando
eu tinha três anos, ela me chamou para dançar nos intervalos”, lembra. Para Cecília, interpretar tornou-se um hábito. “Gravava tudo quanto era comercial e imitava os personagens”, conta a menina. Aos cinco anos,
ela foi chamada para participar de Comédia da vida privada. Aos sete,
já havia feito 47 comerciais, quando arrematou o prêmio revelação da Associação Paulista de Críticos de Arte.

Na trama vampiresca, trocou o primeiro selinho de sua vida com o colega Kayky Brito – ou melhor, o vampiro Zeca –, despertando a inveja de muitas meninas da sua idade. Aos 14 anos, Kayky é campeão de cartas na novela. E não fica atrás de Cecília no quesito talento. Para ele, os maiores estímulos foram os da irmã mais velha, a atriz Sthefany Brito (a Samira de O clone). “Quando eu tinha uns oito anos, resolvi fazer uma peça de teatro com ela”, lembra Kayky. Depois, Sthefany foi chamada para gravar Chiquititas e ele, na época com dez anos, acabou no elenco. “Kayky entrou para fazer uma ponta e ficou até o fim”, conta a mãe, Sandra. Quando pintou o teste para o Zeca, ele se inscreveu, sem muita fé. “Não esperava ganhar o papel. O sucesso foi uma surpresa. Nunca fiz curso para atuar na tevê”, diz. Ele se esquece de que durante toda a infância recebeu estímulos. E que eles podem valer mais do que qualquer aula de interpretação.

Na receita do talento, até o período intra-uterino é fundamental. “O simples fato de gêmeos univitelinos ocuparem lugares diferentes no útero influi na formação da personalidade”, explica Gilberto Xavier. Os estímulos ao bebê começam durante a gestação. A partir da 24ª semana, o feto já ouve sons e, um mês depois, distingue ruídos. Talvez a exposição precoce e intensa à música explique o desempenho excepcional da cantora Camila Titinger, 12 anos. Sua mãe passava horas ao piano durante a gravidez e em seus primeiros meses de vida porque tinha de se preparar para a faculdade de música. “Estudava cinco horas por dia”, lembra Carla. “Depois, comecei a trabalhar com eventos.
Aos sete anos, Camila me pediu para entrar
na frente da noiva cantando. Todo mundo adorou”, conta.

Nas brincadeiras ou em frente ao espelho, a menina cantava o tempo todo. De lá para cá, já gravou com Ivan Lins e padre Marcelo Rossi, participou da trilha sonora de Terra nostra e foi a revelação do último Criança esperança. Em setembro, fez seu primeiro show exclusivo, no Supremo Musical, em São Paulo. “Gostei de ver a receptividade de amigos e parentes. É uma delícia cativar a atenção do público”, diz. Com a clássica Ave Maria do morro, de Herivelto Martins, Camila ficou entre os 12 finalistas do último prêmio Visa de MPB. Lançou o CD Sol de primavera e já prepara o próximo. Tudo isso sem nunca ter feito aula de canto. O professor de genética comportamental Renato Zamora Flores, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, explica como a atividade da mãe pode ter influenciado a filha. “A exposição à música desenvolve o córtex auditivo, assim como a exposição à violência faz com que áreas cerebrais relacionadas ao medo fiquem potencializadas, criando pessoas agressivas”, pontua. Ele explica que os neurônios de um bebê não estão comprometidos com nenhuma função específica. “São os estímulos que estabelecem essas funções”, ensina.

É importante notar que os estímulos não funcionam se não houver motivação. Segundo o neurologista infantil Luiz Celso Vilanova, da Universidade Federal de São Paulo, a criança deve sentir prazer ao realizar uma atividade. “Não é só colocar um CD para tocar. É preciso ficar com a criança, dançar com ela, bater palmas”, diz. Outra grande força motivadora são as reações positivas da família às ações da criança. Provocar a alegria nos adultos em volta é um grande reforço positivo. Quando o catarinense Pablo Rossi, 13 anos, manifestou interesse em estudar piano, o pai, o professor de espanhol Domingo Juan Carlo Rossi, vibrou. Como a esposa, ele sempre foi apaixonado por música clássica. Pablo tinha apenas seis anos na época, mas foi firme no estudo. Depois de um ano, a família comprou um piano num consórcio. O investimento rendeu ao menino o prêmio Revelação no Festival de Música de Campos do Jordão (SP) em 2001. O maestro Roberto Minczuk, da Orquestra Sinfônica de São Paulo, resolveu convidá-lo para participar de um concerto. “Fiquei surpreso. A Sinfônica traz solistas internacionais consagrados. Não é comum o solo de uma criança”, orgulha-se o menino.

Pablo estuda piano de três a quatro horas por dia com a mesma satisfação com que joga bola ou vai ao cinema. “Para ser um profissional top no piano, é preciso boa técnica e musicalidade. Isso a gente não compra. Conquista-se quando se dá a vida à música”, afirma, em sua sabedoria infantil. A mesma receita vale para o carioca Pedro do Vale Bernardo – o Pedrinho do Cavaco. Com apenas 12 anos, ele já ganhou um prêmio de R$ 10 mil no Domingão do Faustão e elogios de bambas como Martinho da Vila, Beth Carvalho e Alcione. Integrante da escola de samba Mangueira, o garoto desde cedo se deliciava com as rodas-de-samba e assumiu o instrumento como seu melhor parceiro. “Toco desde os seis anos. Vi uma banda de pagode e resolvi aprender. Olhava a mão dos músicos e repetia as posições”, conta. Hoje, ele alia o curso de cavaquinho com aulas de piano clássico e não esmorece na busca por seus objetivos. “Estou estudando para me tornar maestro”, promete.

Sem persistência, não há talento que apareça. Apostar em alguma coisa e correr atrás para conquistá-la é fundamental. Segundo pesquisas em psicobiologia feitas pelo professor Robert Cloninger e divulgadas pela American Medical Association, o tipo de personalidade faz a diferença. Segundo ele, a personalidade se divide em duas partes: o temperamento (predominantemente biológico) e o caráter (estruturado pelo ambiente). Por temperamento entenda-se a procura por novidade, o cuidado para evitar danos, a busca por recompensa e a persistência. O caráter, por sua vez, compreende a capacidade de autotranscendência, a cooperatividade e o autodirecionamento. Trocando em miúdos, isso significa que, sem um temperamento curioso e persistente e sem um caráter decidido e aplicado, uma criança dificilmente dedicaria horas a uma atividade que só traz compensação futura.

A persistência e a vontade podem servir de areia e cimento para a criatividade de uma criança mesmo quando o ambiente não parece
ideal. Prazer, curiosidade e a falta de recursos motivaram Paulo Martins, 21 anos, a criar robôs a partir de sucata. Suas criações estão expostas em uma das salas da Estação Ciência, centro interativo de difusão científica da USP. Entre elas destacam-se o Robocop e o E.T., cópias
dos famosos personagens de cinema. Todos os robôs andam e viram a cabeça. Uma cena incrível para quem conhece a trajetória de Paulo. Criado apenas pela mãe, a empregada doméstica Maria da Penha Santos Martins, ele e os sete irmãos cresceram em uma favela. Paulo estudava de manhã e passava as tardes num lixão. Era lá que encontrava a matéria-prima para seus inventos. “Eu pegava brinquedos quebrados, olhava como funcionava e remontava. O primeiro que eu fiz foi um carrinho de madeira, com rodas de borracha. Logo depois, construí
uma casa e um foguete”, conta ele. Apesar da habilidade, repetiu
várias séries na escola e, aos 13 anos, foi trabalhar numa borracharia com um tio. Parte do que ganhava, gastava na compra de revistas de mecatrônica e robótica. “Entendia quase tudo. E aprendi alguma coisa sobre eletricidade na borracharia”, relata.

Explicar esse interesse tão destoante do meio em que Paulo vivia é uma tarefa quase impossível. Mas a combinação de temperamento e caráter podem ter feito a diferença. “Esse rapaz deve ter alta capacidade de abstração e de síntese construtiva, o que lhe permite ver o todo a partir de uma parte. São habilidades que ele desenvolveu à revelia do suporte socioeconômico, tido como facilitador”, avalia o neuropsicólogo Daniel Fuentes, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Mas isso não significa que sua vivência não tenha sido rica em estímulos”, diz. De certa forma, a diversidade do lixão foi para Paulo o maior dos estímulos. Além disso, com certeza ninguém lhe coibiu a curiosidade com uma bronca por ter desmontado um brinquedo. Nada ali tinha dono. Hoje, o rapaz faz supletivo do ensino médio e quer ser cientista. A contar por sua história, alguém duvida que ele consiga?