Encantar a exigente platéia internacional parecia ser um atributo exclusivo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em sua primeira viagem oficial à Europa depois da posse, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva provou que um ex-metalúrgico, sem diploma universitário, que só fala português, vale tanto quanto um refinado sociólogo e poliglota. O sucesso de Lula lá, em pouco mais de três dias, foi sentido nos Alpes suíços e nos palácios governamentais da Alemanha e da França. Arrancou aplausos dos homens mais poderosos e ricos do mundo, no Fórum Econômico Mundial, e elogios rasgados da imprensa conservadora. Seu jeito sincero e direto emociou até mesmo Horst Köhler, diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ao contar que sua mãe, dona Lindu, o havia ensinado a conversar olhando nos olhos, Köhler pediu: “Posso abraçá-lo?”

A turnê de Lula começou na noite de sábado 25, quando chegou à Suíça, vindo do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, onde sua estrela também brilhou. No dia seguinte, o Centro de Convenções de Davos parou para ver Lula chegar ao Fórum Econômico Mundial. Dos banqueiros mais poderosos do mundo aos representantes das grandes empresas, todos queriam ficar perto do ex-torneiro mecânico pobre que chegou à Presidência do Brasil. Ouviram em silêncio sua defesa de uma nova ordem econômica mundial e a proposta de se criar um fundo internacional de combate à fome. “Nós respeitamos todo mundo, mas exigimos respeito, não seremos mais cidadãos de segunda classe”, avisou Lula. Ele foi o primeiro a ousar discursar em português no Fórum Econômico Mundial. Em anos anteriores, FHC falou em inglês, e o ex-primeiro-ministro Mário Soares exibiu o seu francês. Lula recebeu aplausos como nunca se viu no evento habitualmente sisudo e prepotente. Ele chocou os poderosos executivos ao contar que comeu pão pela primeira vez aos sete anos. Em apenas 14 minutos, Lula demonstrou que é possível reivindicar justiça global, pedir paz e convocar guerra contra a fome na língua de Luís de Camões. Foi presenteado pelo cartunista brasileiro Claudius Ceccon com uma camiseta com sua figura, vestida como Asterix – o herói gaulês da história em quadrinhos que luta contra o Império Romano. E a inscrição: “Lulasterix e sua poção mágica, 52.793.004 votos.”

O ex-presidente dos EUA Bill Clinton pediu a Lula que fosse encontrá-lo em seu hotel. O presidente avisou que o receberia, mas no Centro de Congressos. Clinton foi e ainda levou a filha, Chelsea. As palavras de Lula atingiram em cheio o milionário Bill Gates, presidente da Microsoft, que prometeu doar equipamentos para escolas e bibliotecas públicas brasileiras e ainda lançar um programa para desenvolver software no Brasil. A mídia foi um bom termômetro para medir o sucesso do presidente brasileiro. “Lula foi ovacionado em Davos”, escreveu o diário francês Libération, criado pelo filósofo Jean Paul Sartre. O jornal publicou em duas páginas a íntegra do discurso de Lula. O Le Figaro, conservador da primeira à última linha, disse que Lula se afirmou como “porta-voz dos países emergentes” e cedeu a um elogio escancarado: “No aplaudímetro, o presidente de 170 milhões de brasileiros arrebata muito mais do que Colin Powell.” O jornal britânico Financial Times, o mais importante do mundo na área financeira, observou que, “apesar de propor uma nova ordem econômica para uma audiência composta por alguns dos maiores beneficiários da ordem vigente, o discurso de Lula foi recebido por uma trovejada de aplausos e vivas esparsos.” Para a imprensa argentina, ele foi a estrela do Fórum Econômico Mundial. Deixou em segundo plano, lá para trás, Colin Powell, o secretário de Estado americano, que discursou uma hora antes de Lula. Segundo o diário Clarín, “as palavras de Lula arrancaram aplausos e os gritos típicos dos fãs”. O também argentino La Nación destacou o fato de que “empresários, políticos e economistas presentes no auditório aplaudiram e em alguns casos ovacionaram o presidente de origem pobre”. Em editorial, o jornal espanhol El Pais afirmou que Lula seduziu em apenas 48 horas duas platéias inteiramente diversas, a de Davos e a de Porto Alegre.

Gargalhada – Na segunda-feira 27, feliz com o sucesso que fez nos Alpes, Lula chegou a Berlim descontraído para encontrar-se com o primeiro-ministro Gerhard Schroeder, que propôs apressar as negociações para concluir um acordo entre a União Européia e o Mercosul. “Volto para o Brasil com a alma lavada. Falei em Davos aquilo que falei em Porto Alegre. Não sou político de duas caras”, comentou. Lula fez o colega alemão cair na gargalhada ao responder de forma espirituosa a uma espinhosa pergunta de um jornalista sobre como reagiria caso os EUA declarem guerra ao Iraque sem o aval da ONU: “Na minha terra tem um ditado que diz que o bom político pensa, depois responde; os outros políticos, que são melhores, pensam e não respondem.” O chanceler alemão fez questão de receber Lula para o jantar em seu apartamento privado na chancelaria, a sede do governo alemão, local reservado apenas aos amigos, como Bill Clinton.

O estilo caloroso de Lula não cativou apenas os políticos de centro-esquerda como Schroeder, O presidente francês, Jacques Chirac, representante da centro-direita, confidenciou a Lula: “O senhor me
tocou no coração. Estou à disposição para o que precisar.” Integrante
da comitiva brasileira, o ministro do Trabalho, Jacques Wagner, contou que os comentários que mais ouviu sobre o presidente no tour europeu foram: “Ele é muito preparado, inspira confiança e sinceridade.” O presidente brasileiro foi simpático, mas ao mesmo tempo sincero. Ao
lado de Chirac, criticou o protecionismo comercial praticado pelos EUA
e pelos países europeus. Mas também conseguiu arrancar risadas do colega francês ao criticar a guerra contra o Iraque. “Fiz uma campanha com o nome Lula, paz e amor. Não vai ser agora que vou defender a guerra”, afirmou. O presidente brasileiro conseguiu dos alemães e franceses a promessa de apoio à antiga reivindicação do Brasil de ser aceito como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. “Lula surgiu como algo novo em meio a um cenário mundial pessimista.
Ele ocupou um lugar que estava vazio. Os grandes países emergentes
não se faziam ouvir”, observou Paulo Vizentini, professor de história
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que acabou de lançar
o livro Relações internacionais do Brasil, de Vargas a Lula. Missão cumprida, 28 anos depois de fazer sua primeira viagem internacional – como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, foi
a Tóquio para um congresso dos trabalhadores da Toyota –, Lula desembarcou em Brasília às 7h45 da manhã de quarta-feira 29, nas nuvens e, de fato, com a alma mais do que lavada.

OS VENTOS DISSIDENTES DO SUL

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não deveria ter ido ao Fórum Econômico Mundial nem ter proposto aos países ricos criar um fundo global para combater a fome. As opiniões são de um dos organizadores do Fórum Social Mundial, concluído na terça-feira 28, em Porto Alegre, Cândido Grybowski, filósofo com doutorado em sociologia na Sorbonne (França). Ele dirige o Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas (Ibase), fundado em 1981 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Ex-filiado do PT, esse gaúcho de 57 anos se orgulha do sucesso do fórum, que em três anos triplicou o número de participantes.

ISTOÉ – O sr. foi um dos que criticaram a ida do presidente
Lula a Davos. Mantém a opinião mesmo depois do bom desempenho dele na Europa?
Cândido Grybowski –
Como presidente e liderança mundial emergente, Lula fica entre duas lógicas e tem de zelar por
isso. Mas sua presença em Davos pode tirar um pouco da
legitimidade simbólica do Fórum Social porque Lula é um líder
no movimento. Por isso fui contra.

ISTOÉ – Os Estados Unidos já anunciaram extra-oficialmente ajuda ao Fome Zero. O sr. acredita que o G-8 possa financiar
um fundo global de combate à fome?
Grybowski –
O G-8 não tem legitimidade. É um clube privado das principais potências do mundo. Esse fundo que Lula anunciou já existe, só que ninguém põe dinheiro nele.

ISTOÉ – O sr. concorda com as críticas que vêm sendo feitas ao Fome Zero, em especial à forma de distribuir os cupons?
Grybowski –
Os cupons parecem caridade. Qualquer controle vai custar mais caro do que o alimento na outra ponta. Se a idéia prevalecer, o programa pode fracassar. O que me entusiasma no Fome Zero é sua possibilidade de se tornar uma estratégia para a mudança do desenvolvimento, com recursos escassos.

ISTOÉ – Quais as mais importantes idéias lançadas
em Porto Alegre?
Grybowski –
Os temas dominantes foram a guerra e o imperialismo americano, com destaque para a ONU, hoje mais representada
por governos do que pelos povos. Falou-se ainda da islamofobia. Há um clima de que todo árabe é terrorista, legitimando uma ação militar que esconde os reais motivos da guerra: o controle das fontes de energia no Oriente Médio. Até maio lançaremos uma publicação
sobre o que aconteceu no fórum.

ISTOÉ – O primeiro Fórum Social Mundial, em 2001,
reuniu 20 mil pessoas. O terceiro, mais de 100 mil.
Por que o sucesso crescente?
Grybowski –
O fórum cresceu porque atende à expectativa da população. Deslegitimamos as políticas centradas no mercado,
que privilegiam o crescimento a qualquer preço.

ISTOÉ – A atitude da militante que jogou a torta no presidente do PT, José Genoino, foi legítima ou uma simples autopromoção?
Grybowski –
É um fato isolado. Não diria que é ilegítimo
estarem tão irritados. São qualificados, têm curso superior,
mestrado, doutorado e não conseguem emprego. São muito
mais interessantes do que os yuppies.

Celina Côrtes