Agora que a fase de caça a terroristas e ditadores sanguinários vive seus momentos finais, o presidente dos EUA, George W. Bush, aproveita o sucesso da missão Mars Exploration Rover, que pousou a sonda Spirit em solo marciano no domingo 4, para amadurecer a idéia de lançar um ambicioso plano de conquista espacial. O que se discute entre paredes, segundo uma notícia que vazou da Casa Branca no mês passado, é se os Estados Unidos devem voltar à Lua para, enfim, povoá-la ou se devem direcionar sua ambição para mais longe, rumo à conquista definitiva de Marte. Seja qual for o destino do programa espacial americano, seu anúncio servirá de base de lançamento para a reeleição de Bush, disputa marcada para o final do ano. Nada como a promessa de uma epopéia histórica para angariar votos, principalmente em um momento em que a China, o atual “perigo vermelho”, coloca um homem em órbita e demonstra fôlego para arriscar novas aventuras no espaço.

Mesmo que ganhe mais quatro anos de mandato, Bush certamente não verá o resultado de sua política vestido do cargo de presidente. Se optarem por colonizar a Lua, os EUA só deverão conseguir colocar um homem lá num prazo de 15 anos. A viagem tripulada rumo ao planeta vermelho deve levar ainda mais tempo. Ambos os objetivos, à luz da ciência, são factíveis. O que falta é dinheiro para a Agência Nacional de Aeronáutica e Espaço dos EUA, a Nasa, viabilizar a expedição. Dinheiro que só sai, diz a história, com motivos acima das pretensões científicas. Os Estados Unidos só foram à Lua, em 1969, para derrotar os soviéticos, que haviam saído na frente com o cosmonauta Iuri Gagarin, em 1961. Estes, por sua vez, só investiram tempo e dinheiro em astronáutica para provar aos americanos que seus foguetes, de potência sem precedentes, poderiam atingir Nova York partindo de território soviético.

Os americanos colecionaram dezenas de fracassos até a vitória final, com a bandeira americana cravada em solo lunar. “Nós escolhemos ir à Lua nesta década e fazer as outras coisas não porque elas são fáceis, mas porque elas são difíceis”, cravou o presidente John Kennedy em 1962. A promessa foi cumprida e Neil Armstrong tocou a superfície lunar em 20 de julho de 1969, seis anos após a morte de Kennedy. A missão oficial da Apollo 11 não tinha nenhum propósito científico a não ser pisar na Lua e trazer os astronautas vivos para a Terra. “Seja para a Lua ou para Marte, estamos prontos para o desafio”, diz Sharon Conover, a anfitriã de uma platéia de 70 jornalistas que visitaram o Johnson Space Center (JSC), em Houston, Texas, dias antes do vazamento dos planos da Casa Branca.

Batizado em homenagem ao texano Lyndon Johnson, vice e sucessor de Kennedy, o JSC fica a 40 minutos de carro do centro da quarta maior cidade americana. No caminho, logo fica claro que o visitante está chegando a um lugar especial. Afinal, não é fácil encontrar um McDonald’s ornamentado com o boneco gigante de um astronauta no teto nem uma oficina mecânica chamada Nasa, vizinha de uma loja de bebidas chamada Nasa, que por sua vez fica colada a uma loja de conveniência chamada Nasa. A verdadeira Nasa começa no ponto em que a paisagem urbana se transforma num gramado cheio de palmeiras onde repousa uma réplica do histórico foguete Saturn V. Não fosse por ele e um ou outro foguetinho em exibição, o JSC passaria tranquilamente por uma universidade, com seus prédios espalhados numa área plana. Só quando se abrem as portas do edifício principal é que a importância do lugar salta aos olhos.

Instalados na sala de comando Azul, os controladores de vôo receberam os últimos sinais da Columbia, antes que ela se desintegrasse na atmosfera, em 1º de fevereiro de 2003 matando seus sete tripulantes. Outras cento e tantas missões dos ônibus espaciais foram comandadas do mesmo recinto. No momento em que os jornalistas chegam à sala, um grupo de 20 astronautas fazia simulação de um vôo do ônibus espacial. Vôo que, de fato, só deve acontecer a partir de abril, na melhor previsão. “A configuração dessa sala é praticamente idêntica às utilizadas nas missões Apollo”, diz o diretor de vôo Jeffrey Hanley, antes de explicar a importância de cada um daqueles inúmeros terminais que mais parecem as telas da Matrix. Muito diferente da sala que acompanha o funcionamento na Estação Espacial Internacional (ISS).

Espaço

Mais moderna e mais automatizada, ela requer menos gente em terra, apesar de o JSC ser apenas um dos vários centros de comando da estação espalhados pela Terra. Hoje, EUA e mais 16 países, entre eles Rússia e Brasil, estão empenhados em manter a humanidade suspensa ininterruptamente no espaço – façanha que acaba de completar cinco anos e que no momento enfrenta um vazamento de pressão ainda sem solução. Desde então, 30 missões espaciais montaram uma estrutura que hoje pesa mais de 200 toneladas e tem internamente o tamanho de uma casa de três quartos. No telão à direita da sala, aparece o russo Alexander Kaleri, que está a 300 quilômetros de altura em companhia do americano Michael Foale na chamada “Expedição 8”. Há três meses eles são hóspedes da ISS, e deverão permanecer por lá até abril, quando acredita-se que os ônibus espaciais já tenham sinal verde para voar novamente. Hoje em dia, dois objetivos movem os homens da Nasa para tentar trazer de volta os velhos tempos à agência: retomar as viagens com os ônibus espaciais o mais brevemente possível e manter a estação espacial em órbita. “São tempos difíceis, mas estamos lidando com exploração e aventura”, resigna-se o astronauta suíço Claude Nicolier, o primeiro europeu a entrar para o JSC, nos anos 80. Ele já fez o que os astronautas chamam de EVA (a sigla, em inglês, para atividade extraveicular), que significa ficar solto no espaço. Das quatro viagens que fez no ônibus espacial, em duas ele ficou do lado de fora para consertar o telescópio Hubble. O discurso de todos os interlocutores da Nasa, mesmo em tempos de crise, é apaixonado. Nem o duro relatório de auditoria realizado após o desastre da Columbia, que identificou uma estrutura administrativa viciada e sugeriu mudanças profundas na instituição, parece tirar o ânimo das pessoas que trabalham lá. “Eu estou nessa porque tenho certeza que minhas filhas vão passear no espaço”, diz o engenheiro Jack Bacon, ao apresentar a sala de simuladores aos jornalistas, uma área equivalente a um campo de futebol americano onde estão reproduzidos fielmente todos os módulos da ISS. “Agora só estamos esperando um aval da presidência dos EUA para trabalharmos com a China”, diz, antecipando uma jogada no difícil e delicado xadrez geopolítico-espacial.

Show em cores

Ao contrário de seus colegas europeus, que perderam mais uma vez a chance de fazer contato com a sonda Beagle-2, que deveria ter chegado em Marte no dia de Natal, o ano começou em clima de festa para os engenheiros, técnicos e cientistas da Nasa envolvidos na missão Mars Exploration Rover. Pela primeira vez na história, os terráqueos puderam ver uma imagem colorida e de altíssima definição do planeta Marte. Nada muito revelador para os leigos – apenas uma área de terra avermelhada cheia de pedras –, mas um verdadeiro deleite para quem há décadas trabalha e sonha com o planeta vermelho. O autor das fotos, feitas há mais de 160 milhões de quilômetros da Terra, é o robô geológico Spirit, que depois de viajar 487 milhões de quilômetros, pousou com sucesso em solo marciano no domingo 4. Mais especificamente na cratera Gusev, uma bacia do tamanho de Israel, ao sul de Marte, que se acredita ter sido cavada por um rio num passado remoto.

Com o sucesso da etapa inicial da missão, a Agência Espacial Americana aguarda agora o desempenho do jipe geológico em terra. Um pequeno problema na antena e no sistema de airbags do Spirit vai atrasar em alguns dias a sua primeira voltinha pelos arredores de Marte, mas nada que comprometa a sua atuação.

Nos próximos três meses, o robô deverá vasculhar a superfície do planeta analisando o solo e as rochas em busca de vestígios da existência de água que pudesse indicar que um dia o planeta foi habitado. Para completar a missão, o Spirit deve receber a
companhia de outro jipe, o Opportunity, em 25 de janeiro. As
tarefas serão as mesmas, mas realizadas em pontos diferentes do planeta. A Nasa promete para os próximos dias a imagem panorâmica completa de Marte, mas, enquanto isso, quem quiser saber mais detalhes da missão poderá assistir ao documentário do National Geografic Channel, com estréia marcada para o dia 18. O programa Marte: morto ou vivo mostrará como foram feitos os trabalhos nos laboratórios da Nasa, como os robôs foram construídos e os primeiros momentos do Spirit em Marte. Pelos padrões americanos, não é de se estranhar se em breve estrear nas telonas mais um filme sobre a conquista de Marte. Desta vez em cores.

Cláudia Pinho