Em 1939, durante uma viagem pelo México, o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Fatumbi Verger (1902-1996) – na juventude simpático à Revolução Russa – resolveu fazer um retrato do líder soviético Leon Trotski. Mas o grande opositor do stalinismo não se mostrou receptivo à investida. Foi só, no entanto, Verger mostrar as belíssimas imagens que há sete anos vinha colhendo pelo mundo para Trotski ceder ao pedido. A passagem faz parte de Verger – um retrato em preto e branco (Corrupio, 484 págs., R$ 90), escrito a quatro mãos pela pesquisadora Cida Nóbrega e pela jornalista Regina Echeverria, primeira biografia de um dos maiores estudiosos da cultura afro-brasileira, que trocou Paris por Salvador – para ele um dos “umbigos do mundo” – e ali viveu sem grandes luxos e com pequenas interrupções por cerca de 50 anos. O bem-diagramado livro revela-se imprescindível ao acompanhar a trajetória do francês desde a infância luxuosa em Paris, passando por sua decisão de largar tudo e errar como um monge e aventureiro pelos cinco continentes até se transformar a contragosto no pesquisador, laureado doutor pela Sorbonne.

Quem conheceu de perto sua personalidade invulgar sempre é pródigo
na admiração. O escritor francês Joël Vernet encantou-se ao entrar
em contato com a extraordinária produção fotográfica de Verger, da
qual o livro selecionou 50 imagens preferidas num acervo de 63 mil.
“Seus olhos viram a beleza deste mundo”, disse Vernet. Igualmente etnólogo, Théodore Monod foi mais longe: “Verger é um homem livre
e disponível. É talvez o único homem livre que eu conheça.” Também próximas do retratado são as idealizadoras do projeto. A fotógrafa Arlete Soares fez as imagens que ilustram a narrativa ágil e detalhista – ela criou a editora Corrupio justamente para editar no Brasil os livros de Verger publicados na França, os quais são traduzidos por Cida Nóbrega. Junto com Regina Echeverria, ela muniu-se de vasta pesquisa e de longas entrevistas com mais de 60 pessoas do círculo de Verger no Brasil, na França e na África. Mapearam as andanças do francês e ainda ressaltaram traços de sua personalidade reclusa.

É, portanto, com toda a autoridade que Cida e Regina podem dizer que Verger cultivou uma “tendência atávica para o pessimismo, próprio das pessoas que morrem de medo de se decepcionar”. Sua maior frustração, o livro afirma, talvez tenha sido a separação do pintor suíço Eugène
Huni, com quem foi morar no Taiti, em 1932, no episódio mais obscuro
de sua vida. Sobre Huni, Verger disse, aos 70 anos: “Este homem mudou minha vida.” Mas que outros motivos levariam aquele francês pacato a se sentir realizado ao passar horas no breu de um bar africano, onde se via apenas o branco dos olhos e dos dentes dos nativos, só porque no escuro podia se sentir como um negro? Depois de errar pelo planeta com sua Rolleiflex e desistir de um suicídio com data marcada, a atração de Verger pela cultura negra enredou sua existência. Entre as belíssimas passagens do livro, a chegada a Salvador, na madrugada de 5 de agosto de 1946, a bordo do navio Comandante Capella, é marcante. “Foi então que assisti, pela primeira vez, à maravilhosa orquestra de garrafas vazias e pratos, batidos na cadência do samba-de-roda, e o som agradável que podem produzir batidas ritmadas dos dedos sobre uma caixa de fósforos.” Este é apenas um flagrante da vida de Pierre Verger, personagem fascinante à espera de um grande filme.