Logo na cena de abertura de Gangues de Nova York (Gangs of New York, Estados Unidos, 2002) – cartaz nacional na sexta-feira 7 –, o americano Martin Scorsese mais uma vez mostra-se um grande cineasta. Com um close no qual só se vê a mão de um homem amplificando aflitivamente o som de uma navalha cortando sua barba sem espuma, o diretor começa a contar sua história violenta, iniciada na Nova York de 1846. Prestes a terminar seu barbear, o reverendo Vallon – Liam Neeson em participação especialíssima – se corta e em seguida entrega a lâmina para seu pequeno filho, que ameaça limpá-la na calça. “Nunca faça isso. Deixe o sangue nela”, diz. A partir deste momento, durante 2h40 o sangue permanecerá na tela e depois na retina do espectador, não exatamente pela crueza do que se vê, mas pela maneira espetacular como Scorsese filmou este épico, dando uma aula de cinema para vários diretores que, para esconder histórias bobinhas, têm feito filmes estilosos, cheios de reentrâncias falsas e incompreensíveis.

O ritual de Vallon é premonitório. Como líder da gangue de irlandeses Coelhos Mortos, ele prepara-se para enfrentar a de Bill “O Açougueiro”, líder dos Nativistas, papel de Daniel Day-Lewis em momento soberbo. Sob inverno rigoroso, vão brigar pela posse de um ponto da baixa Manhattan. Inicia-se, então, a batalha, na verdade uma dança cinematográfica, só antes vista nas telas pela engenhosidade de Sam Peckinpah, um cineasta que nunca vulgarizou a violência nas suas imagens. A chacina, aos poucos, vai tingindo de vermelho a neve sobre o chão. Seria o momento de Scorsese abusar dos closes de machados cravando costelas e facas estripando estômagos. Mas não, o ódio dos rivais mostra-se em atormentadora câmera lenta, culminando com o olhar desesperado do pequeno Vallon ao ver o pai sucumbir sob a lâmina do Açougueiro. Passam-se 16 anos, e o garoto que foi criado em reformatórios ressurge em Leonardo DiCaprio, agora como o estranho Amsterdam de beleza cândida encobrindo um ódio interno de vingança, em meio aos escombros sociais causados pela Guerra Civil americana.

A guerra que, entre 1861 e 1865, separou os Estados americanos do Norte e do Sul e instigou um racismo brutal, também entra na órbita da história sobre a rivalidade entre Nativistas – orgulhosos de seu passado colonizador e predador – e os milhares de irlandeses que chegavam à América para ajudar a construir um país hoje feito de todas as raças.
Tal similaridade com os dias atuais não é gratuita, conforme atesta o próprio Scorsese em entrevista recente. “O filme mostra o teste do
que a América viria a ser”, enfatiza ele. Baseado num livro de 1927,
de Herbert Asbury, Gangues de Nova York descreve em tons de ficção-verdade e muitas vezes com ironia o lixo, a fúria, a hipocrisia e a amoralidade contidos nas origens da maior potência mundial. Não
foi à toa que Martin Scorsese acalantou o projeto durante 25 anos, batendo à porta de quase todos os estúdios de Hollywood e recebendo negativa de todos eles. Finalmente, em setembro de 2000, tendo à
frente a poderosa Miramax, levou a cabo sua empreitada que consumiu US$ 97 milhões, a obra até agora mais cara do diretor de Taxi driver, Depois de horas e Os bons companheiros.

Filmado em Cinecittà, Roma, os históricos estúdios por onde passou o gênio de Federico Fellini, Gangues de Nova York consumiu oito meses e meio de filmagem e quase dois anos de produção. É uma maravilhosa reconstituição de época – com desenho de produção do craque Dante Ferretti – em terreno de 3,2 quilômetros, sem nenhuma cena digitalizada ou truque de computador. A única nova técnica é uma câmera de 360 graus, com a qual Scorsese faz impressionantes malabarismos que deixam a platéia embasbacada e, durante as filmagens, não raro arrancava aplausos de toda a equipe, tal a sua versatilidade em manobrar por trajetos sinuosos, alongando a cena em travellings fabulosos. Cortes bruscos também há. Mas não à maneira dos videoclipes que tanto fascinam diretores modernosos. A montagem de Thelma Schoonmaker,
há 30 anos colaboradora do diretor, que vibra fisicamente diante da moviola, mostra-se extremamente poética no tratamento da violência solta no ar em atitudes, olhares e assassinatos.

O elenco emerge igualmente na mesma sintonia. Daniel Day-Lewis
mistura razão com uma ferocidade felina. Leonardo DiCaprio exibe-se abaixo do colega, mas veste com ódio defensável seu Amsterdam.
O ator de Titanic, aliás, ganhou lobby bonito de Jay Cocks, um dos
três roteiristas, e de Robert DeNiro. Cameron Diaz, na pele de uma habilidosa punguista que se apaixona por DiCaprio, traz graça e feminilidade ao enredo que não sucumbiu à questionável necessidade
de se impor uma love story a um épico no qual os personagens são tão sujos quanto as situações por eles protagonizadas. Gangues de Nova York – vencedor do Globo de Ouro de melhor direção e melhor música, composta pelo grupo U2 – é cinema em estado puro.

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