Quase um mês depois de ISTOÉ revelar a existência dos US$ 34,8 milhões nas contas suíças dos fiscais da Secretaria Estadual e da Receita Federal do Rio de Janeiro, a procuradora da República no Rio Marlyluce Santiago Barra e o delegado da Polícia Federal Adalton de Almeida Martins têm encontrado dificuldades para descobrir como o dinheiro extorquido de empresários saiu ilegalmente do País. As dúvidas do Ministério Público e da PF são alimentadas principalmente pela irrisória movimentação financeira no Brasil, registrada no Banco Central pelo Discount Bank and Trust Company, entidade financeira suíça responsável pelas remessas irregulares. Ao investigar as trilhas do dinheiro sujo, ISTOÉ descobriu que as respostas para os questionamentos do delegado e da procuradora estão mantidas escondidas há mais de um ano nas próprias dependências do Ministério Público e da PF. Em dois cofres secretos da Procuradoria da República e da Polícia Federal de Foz do Iguaçu, um minucioso laudo conclusivo, com 35 mil documentos recolhidos pela perícia técnica da Polícia Federal, mostra que os fiscais da Receita Federal e da Secretaria do Rio de Janeiro utilizavam o mesmo esquema da fraudadora do INSS Jorgina de Freitas e de outros funcionários corruptos do Rio para fazer remessas irregulares de dinheiro para o Exterior.

Se colocarem as mãos no laudo, os responsáveis pela apuração do esquema de corrupção no Rio terão, de cara, acesso a mais de 200 contas sujas em bancos na Suíça, no valor de US$ 890 milhões.
Desse montante, 20 foram abertas no Discount Bank e no seu atual incorporador Union Bancaire Privée (UBP), e pelo menos quatro delas indicam ser, de acordo com relatório, provenientes de dinheiro da corrupção do Rio. Abertas em 1996 na agência do Discount Bank de Zurique, as contas número 182.167ZI, com US$ 3,2 milhões, e a 182.528.ZV, com US$ 4 milhões, chamam a atenção por terem as
mesmas iniciais 182 encontradas nas contas dos demais fiscais do
Rio no mesmo banco suíço. Elas estão ligadas operacionalmente à
conta número 50660.ZK, de US$ 1,5 milhão, na mesma agência do Discount Bank, e à conta identificada com as letras C.O.M.O,
abertas no mesmo período, na agência do UBP de Genebra.

Entre as 200 contas sujas de brasileiros na Suíça já periciadas pela Polícia Federal, uma ajuda a explicar por que o UBV resolveu denunciar as contas dos fiscais ao Ministério Público. Aberta com quase US$ 2,5 milhões em 1997, a conta número 965855, na agência de Genebra do Bank Loyds Trust, tem como beneficiário o comendador de Mato Grosso João Arcanjo Ribeiro, procurado pela PF e pela Interpol em mais 100 países sob a acusação de comandar uma quadrilha ligada ao contrabando de armas e diamantes, à lavagem de dinheiro e a uma série de assassinatos.

O que liga os fraudadores do INSS, os fiscais acusados de extorsão do Rio e o narcotráfico são dois doleiros do Paraná foragidos da polícia: Alberto Yussef e Sílvio Anspak, apontados como os maiores lavadores de dinheiro da história do País. Conhecidos por esquentar dinheiro do narcotraficante Fernandinho Beira-Mar, os doleiros também foram responsáveis pela remessa de parte do dinheiro de corrupção do Rio e do comendador Arcanjo, que, segundo os rastreamentos dos peritos, têm outros US$ 50 milhões em Miami, no Uruguai e nos paraísos fiscais das ilhas do Caribe. Essas ligações perigosas chamaram a atenção da diretoria do UBP. Ao constatarem que o dinheiro dos fiscais chegava na Suíça no mesmo bolo dos recursos do narcotráfico, os diretores do banco acionaram o subprocurador suíço Brent Holtkamp.

Entregue à Receita Federal desde janeiro, o relatório mostra que Anspak, Yussef e outros dez doleiros tinham como base de apoio em suas operações principalmente a agência em Nova York do Banestado – ex-banco estatal do Paraná, privatizado em outubro de 2000 –, que, com a conivência de toda sua diretoria em Curitiba, servia apenas de fachada para uma megalavanderia mundial do contrabando e da corrupção. Instalada num luxuoso prédio da avenida das Nações, a agência, que tinha como correntistas apenas doleiros e parentes dos funcionários, foi a solução encontrada pela rede de corrupção brasileira para atender a uma exigência da Câmara de Compensação Internacional, que define as regras de trânsito de recursos financeiros no planeta. Numa tentativa de coibir operações de lavagem de dinheiro em todo o mundo, a Câmara exige que todas as remessas em dólar passem por bancos americanos antes de ingressar em contas de paraísos fiscais. No caso dos dólares de Arcanjo no Bank Lloyds Trust, o dinheiro começou a sair dos EUA pela conta do Banestado da Marmoraria Internacional, uma empresa offshore criada nas Ilhas Virgens pelo doleiro brasileiro Chaaya Mogarabi. Após passar pelo Bankers de Nova York, o dinheiro seguiu direto para a conta de Arcanjo na Suíça. Discípulo de Yussef, que o avalizou no Banestado, Mogarabi, de acordo com o laudo, teria centralizado todas as operações de narcotráfico do País na conta da Marmoraria. No ano passado, o FBI, com base em informações da PF, conseguiu bloquear a conta da Marmoraria Internacional, com mais de US$ 350 milhões.

Apontado pelo FBI – a Polícia Federal dos EUA, que colaborou com
as investigações da PF – e pelas Unidades de Inteligência Financeiras (Uifs) como o maior trabalho de rastreamento de dinheiro sujo de
todos os tempos, o laudo técnico, que a alta cúpula da PF parece esconder, mostra que, no período de 1996 a 1999, o esquema montado no Banestado serviu para que centenas de políticos, traficantes
e contrabandistas enviassem, por intermédio de doleiros brasileiros,
US$ 30 bilhões para a Suíça e outros paraísos fiscais. Para se ter
idéia, em uma única remessa, US$ 800 milhões foram enviados
para um fundo nas Ilhas Virgens.

Bomba – “Esse relatório, que muitas pessoas tentam esconder, é uma bomba que precisa ser levada a sério e distribuída a todos os procuradores que investigam esquemas relacionados a seu conteúdo”, afirma o procurador de Mato Grosso, Pedro Taques. Apesar de rastrear as atividades de João Arcanjo Ribeiro e outras operações de lavagem, Taques até hoje não teve acesso às informações da perícia técnica. O laudo dos peritos também ajudaria muito os procuradores do Ceará, que há duas semanas conseguiram prender Wilson Roberto Landim, um dos principais doleiros de Fortaleza. Landim é outro que aparece nas listagens recolhidas pela PF. Ao ser informado por ISTOÉ das contas sujas da Suíça, Taques, com o colega de Brasília Guilherme Schelb, acionou o subprocurador da Suíça, responsável pela revelação das contas de Silveirinha, para pedir o bloqueio da movimentação do dinheiro.

O estudo técnico que provoca arrepios nos políticos nasceu de uma audaciosa idéia do delegado José Castilho Neto e de dois peritos de
Foz do Iguaçu, que investigavam operações de lavagem de dinheiro
na região da tríplice fronteira. No começo do ano passado, eles partiram para os EUA. De posse de um protocolo de cooperação assinado no início da década de 90 pelos governos dos dois países, eles conseguiram que
a Justiça americana quebrasse o sigilo de toda a agência do Banestado. Acompanhados de agentes do FBI, que imediatamente bloquearam todos os repasses do banco paranaense para a Bolívia, Colômbia e outros
países ligados ao narcotráfico, os delegados e os peritos passaram
30 dias recolhendo extratos e documentos. No final da operação, eles trouxeram na bagagem um amontoado de 135 contas controladas
por 12 doleiros brasileiros que remeteram, entre 1996 e 1997, US$ 18 bilhões que foram despejados em paraísos fiscais através de 35 mil contas. Na operação, puderam detectar que os mesmos correntistas enviaram mais US$ 12 bilhões para as mesmas contas nos anos de
1998 e 1999. Mas os extratos e os documentos que demonstram
essas novas transações ainda estão nos EUA, sob a tutela do FBI, aguardando que o governo brasileiro vá buscá-los.

A quebra do sigilo dos doleiros permitiu que a Polícia Federal montasse um minucioso mapa da saída e entrada do dinheiro sujo de brasileiros. Laranjas paraguaios, uruguaios e argentinos, arregimentados pelos doleiros – até o momento, a Polícia Federal já identificou 400 deles –, abriram no Brasil contas especiais, destinadas a estrangeiros que têm negócios, mas não moram no País, as chamadas contas CC-5. Por intermédio delas, o dinheiro sujo era enviado para contas em bancos no Paraguai e Uruguai. Os depósitos são feitos por funcionários das casas
de câmbio dos doleiros. As remessas são fracionadas em centenas de operações, sempre abaixo de US$ 10 mil. Acima desse valor, qualquer operação tem que ser comunicada formalmente ao Banco Central.
Das contas paraguaias e uruguaias, o dinheiro sujo segue para contas gigantes na agência do Banestado em Nova York controladas pelos
12 principais doleiros do País. De lá, os dólares são depositados em contas ou fundos instalados em paraísos fiscais, já em nome dos corruptos e traficantes. Para desvendar as operações com tantos detalhes, a Polícia Federal chegou a instalar câmeras nas agências
do Banestado em São Paulo e em Foz do Iguaçu, onde registrou os depósitos, feitos pelos funcionários dos doleiros.

O caminho de volta do dinheiro sujo também foi esquadrinhado pela Polícia Federal. Dessas remessas, pelo menos US$ 2 bilhões já rastreados pelos peritos voltaram ao Brasil da seguinte maneira: depois de passar por oito empresas offshore em paraísos fiscais, o dinheiro de vários correntistas foi reunido em contas-ônibus com 21 dígitos em que apareciam apenas o nome do banco contratado para fazer a operação de câmbio e para trazer de volta o dinheiro, o que acabou facilitando operações de lavagem de dinheiro. Uma outra parte retornava pelos fundos em investimentos fajutos e aplicações, por exemplo, na participação acionária em empresas brasileiras, inclusive de estatais privatizadas. A identificação dos verdadeiros cotistas desses fundos é dificílima. Em geral, o fundo de investimento que aplica o dinheiro no Brasil é formado por um ou dois outros fundos também instalados em paraísos fiscais, estes sim formados pelos verdadeiros donos do dinheiro sujo.

Mesma trilha – Para sair novamente, os recursos se servem de operações fraudulentas de compra e venda de ações, que geram
lucros e prejuízos fictícios. O dinheiro da corrupção dos fiscais do
Rio de Janeiro seguiu a mesma trilha. Os auditores da Receita Federal
e parte dos funcionários do Fisco estadual entregavam o dinheiro
a ser remetido no escritório da Coplac, empresa de consultoria
montada por Herry Rosenberg, representante no Brasil do Discount
Bank e do Scontinvest Equity Fund, um fundo estrangeiro com sede
no paraíso fiscal de Luxemburgo.

Os boys do escritório depositavam o dinheiro em três contas do
laranja paraguaio com o sugestivo nome de Saturnino Arak, entre
outros cooptados pelos doleiros Anspak e Yussef. As contas de
Arak, que também serviram para lavar o dinheiro da fraudadora
Jorgina, em apenas quatro anos movimentaram US$ 1 bilhão. De
lá, o dinheiro obedecia o trajeto-padrão, passando pelo Paraguai
e pelo Uruguai, pela conta do Banestado de Nova York e, finalmente, desaguando na Suíça. Uma outra parte da turma de Silveirinha
utilizava um sistema mais seguro. O dinheiro da propina era
depositado por empresários diretamente nas contas suíças.

Toda essa bolada de US$ 32 bilhões poderia ser recuperada se houvesse mais empenho das autoridades. Considerando que o dinheiro é comprovadamente sujo, bastaria que o Conselho de Controle de Atividades Financeira (Coaf) avisasse aos seus órgãos irmãos no resto do mundo (chamados de Uifs) para que o dinheiro fosse identificado e repatriado. Mas, até o momento, a Polícia Federal e a Receita, também convocada para integrar as investigações, nada fizeram. O dossiê-bomba só serviu mesmo para barganhas políticas. No governo passado, policiais ligados à alta cúpula da Polícia Federal vazaram a informação de que pefelistas constavam na papelada. Hoje, a situação na direção da PF, muito próxima de políticos do PFL, parece ter se invertido.

O QUE SIGNIFICAM US$ 30 BILHOES

 

• A quantia é três vezes maior que o valor envolvido em um dos mais bombásticos escândalos financeiros de que se teve notícia na Argentina. Sob investigação das autoridades locais, suspeita-se que US$ 10 bilhões sumiram do país dias antes da decretação do corralito, em dezembro de 2001.

• A dinheirama equivale a R$ 108 bilhões, que daria para tapar o rombo da Previdência Social durante dois anos seguidos ou bancar o programa Fome Zero durante 21 anos.

• Significa nada menos que 8% de toda a riqueza que a economia brasileira é capaz de produzir durante um ano e corresponde ao dobro da economia nas contas públicas que o governo brasileiro terá que fazer neste ano para cumprir o acordo com o FMI.