Nestes tempos em que o cinema cada vez mais imita os videogames, O último samurai (The last samurai, Estados Unidos, 2003) – cuja estréia nacional acontece na sexta-feira 16 – se mostra surpreendente como um golpe de katana, a espada dos ancestrais guerreiros japoneses. As batalhas que explodem na tela não se travam entre andróides, ETs ou outras figuras inventadas em computadores. Ao contrário, mostram humanidade. Somente homens são capazes de tanta carnificina, desespero e heroismo. O diretor Edward Zwick – que já apresentara os mesmos predicados no excelente Tempo de glória, de 1989 – foi buscar o DNA de sua nova obra diretamente na veia épica do mitológico cineasta japonês Akira Kurosawa. Como resultado, vêem-se as melhores sequências de guerra da temporada ou, talvez, dos últimos anos, embaladas numa história intimista com toques românticos. Na verdade, trata-se muito mais da luta interna de um homem em busca da auto-redenção.

O capitão Nathan Algren, ex-soldado americano que cometeu o pecado de cavalgar ao lado de facínoras do porte do general George Custer e de massacrar índios por onde passava, está buscando a morte. É um suicídio com o consumo industrial de álcool, acompanhado da tortura mental de amargas lembranças. Para a crítica, em geral, é difícil imaginar Tom Cruise vestindo tal personagem. Boa parte acha que o ator é apenas uma celebridade. Tanto que, injustamente, Tom Cruise ainda não ganhou o devido respeito proporcional a seu trabalho. O último samurai deve dar mais uma oportunidade para o reconhecimento tardio. Cruise não apenas torna factível o capitão Algren, como desvela com talento sua difícil metamorfose de homem derrotado a samurai vencido pelos próprios demônios. Este processo é ajudado pelo ritmo imposto pelo roteiro assinado em conjunto por John Logan, Marshall Herskovitz e o próprio Zwick, que na tela aplica bem tanto as pinceladas grossas e nervosas nas batalhas quanto traços sutis no romance e na introspecção de alguns personagens.

A história vai buscar Algren transformado em caricatura de si mesmo numa feira de variedades
em San Francisco e o acompanha até o Japão de 1876. Com fama de matador de índios e militar competente, o capitão é contratado para modernizar as tropas japonesas. Até então, o país mantinha uma insularidade secular. As artes da guerra ou  da paz seguiam costumes arcaicos. Somente no final do século XIX a nação começou a sonhar com a modernidade trazida do Ocidente.  Nem todos, claro, gostaram da idéia. Os samurais – guerreiros feudais a serviço do imperador e temidos por sua maestria no uso de katanas e flechas – preferiam manter o código de honra antigo. Para eles, lutas tinham de acontecer frente a frente e não na distância permitida por balas de rifles ou canhões.

Pouco depois de pisar na caserna do Japão, Algren é investido no comando de uma guarnição tão familiarizada com os mosquetes quanto ele era com os hashis, os talheres japoneses de madeira. Com esta tropa anacrônica, o capitão recebe ordem para debelar uma rebelião de samurais liderados pelo lendário mestre Katsumoto (Ken Watanabe). As poucas cenas desta primeira batalha valem bem mais que as três horas de porradas do fracassado Matrix revolutions ou dos foguetórios nos dois recentes Star wars. A vitória fica com quem faz da luta sua razão de vida e Algren é capturado. Passa, então, o inverno inteiro mergulhado no calor doméstico de uma pequena aldeia. Aos poucos, vai aprendendo não apenas o idioma como os costumes e o espetacular ofício dos samurais. Filosofa com Katsumoto, debate com ele e acabam criando um elo tão resistente quanto a lâmina de aço das espadas.

É assim que o americano adquire espírito japonês. Vive constrangido na casa de uma mulher com dois filhos. São viúva e orfãos de um guerreiro que, ironicamente, o hóspede ocidental matou no campo de batalha. Taka é o nome da senhora e quem já conhece a beleza da ex-modelo Koyuki pode adivinhar que o ressentimento da dona-da-casa deve se transformar em amor. Nada é gratuito ou meloso nesta mudança de humores. Não espere desnudamentos de quimonos ou o rasgar de sedas típicas do império dos sentidos. As cenas mais eróticas envolvem apenas um ombro descoberto à beira de uma bica e Algren sendo vestido pela viúva à sombra da armadura vazia do marido morto. O clímax resume-se a um terno beijo no rosto da bela escudeira.

Deste ponto até o final, o filme mostra todo o arsenal respeitável de Zwick. Desde as lutas em áreas pequenas e fechadas até as
batalhas campais em que as espadas enfrentam os morteiros e armas recém-criadas. No meio desta explosão, o cineasta imprimiu referências diretas até a guerra do Peloponeso. Um virtuosismo da cinematografia  de arte militar que faz o espectador perdoar a improbabilidade de um cavaleiro americano do século XIX ter tanto conhecimento histórico. O final da batalha, embora previsível, mantém o suspense até o último corte de lâmina.

A História – assim, com H maiúsculo – transborda dos fotogramas e pode fazer com que os que a conhecem com um pouco de intimidade encontrem ironias no roteiro. Exemplo: 65 anos depois da suposta chegada do capitão Algren para a modernização militar japonesa, mais precisamente no dia 7 de dezembro de 1941, o Japão bombardearia Pearl Harbor, parte do território dos Estados Unidos. Foi exatamente o espírito samurai revivido pelos modernos militares japoneses, o estopim da guerra que os dois países travariam.