Não fosse pelo rosto e pelo corpo de Sonia Braga no esplendor de seus 20 anos, pela juventude marota de José Wilker e pelos quilos a menos de Mauro Mendonça, Dona Flor e seus dois maridos – que, 25 anos depois, volta às telas na sexta-feira 30, inteiramente sem cortes – poderia ter sido filmado em 2001. A obra atemporal de Jorge Amado, que rendeu o filme de maior público do cinema nacional, ganhou um vigor ainda maior devido ao acréscimo de três cenas mutiladas pela censura de então. A primeira é um apimentado coito anal entre Vadinho (Wilker) e Dona Flor (Sonia); a segunda é uma deliciosa situação na qual a fogosa personagem transa com Teodoro (Mendonça) enquanto o fantasma de Vadinho aplaude do alto do armário. Seu assobio foi eliminado por ter sido considerado desrespeitoso demais. E a terceira cena devolve ao público o prazer de apreciar o reencontro amoroso de Dona Flor e seu primeiro marido, já falecido, com um ardor daqueles de rolar pelo chão. Conforme conta o diretor Bruno Barreto, Dona Flor e seus dois maridos retorna às telas com as imagens totalmente restauradas, acentuando cores e intensificando contrastes, e som dolby stereo em seis canais. “Foi uma viagem no tempo, valeu por várias sessões de análise”, resume Barreto, carioca de 46 anos, há 12 radicado nos Estados Unidos, e 15 filmes na carreira.

A intenção de ressuscitar a fita é antiga. Mas acabou adiada por falta de oportunidade. Não que agora tenha sido um mar de rosas. Barreto e o diretor de fotografia, Murilo Salles, se esfolaram nas últimas duas semanas para conseguir atualizar a qualidade técnica do filme. Faltou, no entanto, apoio para os efeitos especiais, que somariam R$ 40 mil à produção. Assim, permaneceu tecnicamente datada a cena do desaparecimento do fantasma de Vadinho, que hoje seria feita por computador e daria maior sensação de realidade. O quesito distribuição também sofreu certa improvisação da empresa de Luiz Severiano Ribeiro e do pai de Barreto, o produtor Luiz Carlos Barreto. Acostumado ao estilo Tio Sam, o diretor tinha esperanças de conseguir alguma ajuda do governo para novamente trazer à tona um filme que marcou época. Mas ficou só na vontade. “Nos Estados Unidos, a cada dez anos eles elegem os dez filmes mais importantes para a memória americana e os enviam ao Arquivo Nacional como um tesouro”, compara.

Voltar a trabalhar no Brasil, porém, não deixa de ter seu sabor. Sobretudo para um cineasta que foi obrigado a esperar um mês para estrear Dona Flor. Quem na época pilotava a tesoura da censura era um grupo da Superintendência da Polícia Federal, com quem a equipe nem sequer tinha contato. As determinações eram passadas pelo chefe da divisão, coronel Coriolano Fagundes, que, para espanto das cabeças maniqueístas dos tempos da ditadura, não era nenhum bicho-papão. “Era uma boa figura, gostava de cinema e até aliviou a barra dos cortes que sua equipe queria fazer”, lembra Barreto. Mas a negociação foi complicada. Ao mesmo tempo que exibia as cópias em Brasília para os censores, o cineasta fazia lobby com os ministros mais liberais do governo Geisel, como Reis Veloso, do Planejamento, Luiz Gonzaga do Nascimento Silva, da Previdência Social, e Severo Gomes, da Indústria e Comércio. Para compensar antecipadamente o trabalho de convencimento junto às autoridades, Barreto aproveitava as altas doses de erotismo contidas na fita para incrementar seus namoros noturnos com sua primeira mulher, Suzy Gentil. “Foi um de meus melhores momentos”, suspira o atual marido da atriz americana Amy Irving, ex-sra. Steven Spielberg.

Amy, por sinal, chegou a cogitar fazer as malas e morar no Brasil após os atentados de 11 de setembro. Há cinco anos, o casal vive em Nova York e sente que a vida na Grande Maçã não é mais a mesma. Ainda assim, o diretor se julga um otimista a médio prazo e acredita num mundo melhor quando o conflito armado na Ásia e no Oriente Médio terminar. Mesmo porque, ele tem fortes razões para continuar vivendo na capital cultural dos Estados Unidos. “Faço um filme a cada ano e meio. Aqui tenho que esperar três anos para realizar um novo longa-metragem, não há como arrecadar dinheiro”, pondera. Tanto que sua filmografia empata com a de Cacá Diegues, um dos diretores que mais filmam no Brasil. Seu novo filme – uma produção de US$ 35 milhões –, que será lançado no dia 19 de abril de 2002 nos Estados Unidos e entre junho e julho no Brasil, chama-se A view from the top e tem no elenco a louríssima Gwyneth Paltrow, uma das atuais darlings do cinema americano. “É uma comédia rasgada”, define Barreto. A fita conta a história de uma mulher do interior que sonha em ser aeromoça e voar para Paris. “É A estrela sobe aérea”, brinca o diretor, referindo-se à segunda e deliciosa obra da sua carreira.


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