Luciano dos Santos passou de dependente e traficante a um exemplo de esperança de que é possível sair das drogas e do narcotráfico

Aos nove anos de idade, Luciano Maurício Silva dos Santos começou a fumar maconha. Aos 15, se viciou em cocaína. Em seguida, passou a traficar drogas e esteve preso quatro vezes. Chegou a sonhar em ser o maior traficante do Brasil. Capixaba de 38 anos, Luciano ainda enfrentou preconceito com requintes de maldade por ser negro. Só encontrou forças para sair do poço quando chegou ao fundo. Buscou Deus, procurou a ajuda da mãe e começou a mudar de lado. Passou, aos poucos, a trabalhar na recuperação de dependentes químicos. Em 1994, deu início às atividades da Fundação Esperança, em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, onde tem alcançado os melhores resultados. Entusiasmados com o índice de 70% de recuperação entre os internos de sua Fundação, portugueses de Setúbal o convidaram para dar palestras em um encontro de dependentes químicos. Luciano Maurício, único brasileiro a participar do encontro, saiu de lá com um convênio de intercâmbio firmado. Já enviou dois ex-internos para Portugal e volta a Setúbal para um seminário no mês que vem, quando traz outro grupo de portugueses para conhecer sua experiência vitoriosa em Cachoeiro. Sem arrogância, ele mudou a condição de ex-viciado e traficante para a de exportador de know-how na cura de dependentes. É radicalmente contra a liberação das drogas, mas não concorda com a prisão de ninguém pelo porte de um cigarro de maconha. “Essas pessoas têm de ser enviadas para centros de recuperação”, acredita. Também tem uma opinião formada a respeito de como barrar o avanço do tráfico: “As crianças precisam ser conscientizadas desde pequenas nas escolas sobre os riscos das drogas”. Luciano é casado há sete anos com Marcelle Falce Vianna, 33, também ex-viciada em maconha e cocaína. Quando se conheceram, ambos estavam separados dos primeiros casamentos e se sentiram atraídos pela experiência comum. Hoje, Marcelle o ajuda na Fundação e é mãe do único filho do casal, Rafael, de seis anos. “Minha vida agora é de amor”, exulta Maurício.

ISTOÉ – Como começou seu envolvimento com drogas?
Luciano

Aos nove anos. Somos seis irmãos. O mais velho já usava e vendia maconha. Nessa idade tinha experimentado cigarro, quando aprendi a tragar. Pegava as guimbas que encontrava e acendia. Um dia me vi fumando maconha e achei que era cigarro. Engasguei, comecei a tossir, passei mal, vomitei, mas fiquei rindo muito. Achei bem legal. Os outros mais velhos fumavam maconha e não passavam mal. Nessa época, meus pais estavam se separando. Eu era o caçula e muitas vezes dormia entre os dois. Uma noite acordei e meu pai não estava mais ali. Foi aí que a droga entrou de forma profunda na minha vida.

ISTOÉ – Em que momento você percebeu que estava viciado?
Luciano

Experimentei cocaína aos 15 anos. Antes tinha muito medo, via as pessoas usarem e ficarem totalmente travadas. No primeiro dia cheirei muito. Passei mal e mesmo assim não queria parar de cheirar. Comecei a ficar deprimido, o dia estava passando e eu cheirando. A droga estava acabando e a depressão já estava forte. Jurei que ia parar. Fiquei dois dias sem usar a droga. Quando o arrependimento e a ressaca passaram, tentei não usá-la, mas não consegui. Me senti um derrotado. Depois disso, emburaquei. Para que lutar contra uma coisa que não conseguia vencer?

ISTOÉ – De que forma você se envolveu com o tráfico de drogas?
Luciano

Tinha um pai que me mandava para a escola com motorista particular, mas depois que ele se separou da minha mãe muitas vezes passei fome. Constatei que meu irmão conseguia manter seu padrão vendendo drogas. Fui enviado para uma escola pública e matava muita aula. Aos 15 anos parei de estudar. Comecei a roubar droga de meu irmão, sem que ele soubesse, e depois vendia. Gostei daquilo e busquei fontes para poder vender.

ISTOÉ – Você não tinha medo de morrer?
Luciano

Vi meu pai dando coças no meu irmão, que foi preso muitas vezes. Mas o dependente, quando usa drogas e trafica, não tem medo da morte. O traficante tem um poder na mão, que é a droga. O que eu mais gostava quando vendia era de ver aqueles que me desprezavam virem atrás de mim. Não tinha medo de nada nem amava ninguém. Me tornei uma pessoa absolutamente fria. Gostava quando os outros ficavam ao meu redor por causa da droga. Era uma sensação grande de poder.

ISTOÉ – Você acha que a maconha pode levar a outras drogas?
Luciano

No meu caso, percebi que a cocaína me dava muito mais força do que a maconha. Só fumava para aliviar a tensão quando estava muito travado. Na maioria das vezes, o usuário de maconha passa para a cocaína e não quer saber de outra coisa.

ISTOÉ – Você foi preso mais de uma vez. Como conseguiu sair?
Luciano

Fui preso quatro vezes. Por incrível que pareça, em nenhuma delas me pegaram vendendo droga. Era preso em blitz como suspeito, ou por desacato, ao reagir à prisão. Quando vendia droga, ela ficava sempre com outra pessoa, longe de mim. Já tinha convivido com as prisões de meu irmão e sabia como as coisas aconteciam. Minha primeira prisão, aos 14 anos, foi injusta e marcou muito minha vida. Roubaram um canário de briga do vizinho e disseram que fui eu. Me deram umas palmatórias e isso me marcou. Conheci bandidos e assassinos na cadeia. A partir daí, comecei a pensar: agora vou dar motivo para ser preso.

ISTOÉ – Você sofreu muito preconceito por ser negro?
Luciano

Muito. Eles tratam usuário de droga branco diferentemente do negro. Estava no carro uma vez e era o único negro. Paramos em uma batida policial. Deram uma geral e pegaram quatro baseados. Ninguém falou nada com os outros. Só eu fui preso, e a droga nem estava comigo. Antes de vender, eu já tinha fama de traficante, só porque era negro.

ISTOÉ – O que era mais difícil, o vício ou o tráfico?
Luciano

O vício. Foi ele que me levou ao tráfico. Conheci poucos traficantes que não eram viciados. O vício me fazia ser frio, calculista, ambicioso. Meu sonho era ser o maior traficante do Brasil. A mística de ver os Escadinhas da vida era um incentivo. (Escadinha é um ex-traficante do Rio, fundador do Comando Vermelho, que cumpre pena em regime semi-aberto)

ISTOÉ – Qual foi o momento mais difícil que você passou durante esse período?
Luciano

Aos 19 anos fui dispensado do Exército. Queria ser pára-quedista, tinha vontade de parar com as drogas e ter um futuro. Me perguntaram o que eu fazia e eu contei que era usuário de drogas, mas queria parar. Me mandaram para a Polícia do Exército. Não sei se fui dispensado por isso ou por excesso de contingente. Me arrependi de ter falado a verdade. Depois fui para um apartamento em Vitória e fiquei cheirando cocaína com minha turma. Começamos a disputar quem ia tomar conta do ponto-de-venda fazendo roleta-russa. Quando chegou minha vez, já tinha cheirado e bebido muito uísque. Então fui lá na minha infância. Há muito não me lembrava de algo afetivo. Pensei que, por pior que fosse minha vida, ela não poderia acabar ali. Foi o único momento em que ouvi Deus colocar minha vida em minhas mãos. Não era nem cristão. Empurrei a arma para a frente e disse: “Vocês vão me ajudar, quero mudar de vida.” “Broxou”, eles caçoaram. Levantei, peguei um ônibus e fui para a casa da minha mãe, em Cachoeiro do Itapemirim.

ISTOÉ – Em que momento você tomou a firme decisão de mudar?
Luciano

Quando voltei para Cachoeiro, ia na igreja e dizia para mim mesmo que não ia mais usar drogas. Naquela época, não havia tratamentos como hoje. Uma vez estava na igreja e vi o pessoal na fila comungando. Resolvi entrar também, sem saber bem o que era aquilo. Falei uma coisa e acho que fui ouvido por Deus: “Se você está presente mesmo, muda a minha vida, porque não estou aguentando mais.” E minha vida mudou. Comecei a sentir vontade de ajudar as pessoas. Me separei dos amigos drogados. Olhava no espelho e pensava: acredito em mim, mereço ser feliz. Entrei para um grupo de mútua ajuda e passei a ter uma causa dentro de mim.

ISTOÉ – Como começou seu trabalho de recuperar viciados?
Luciano

Primeiro trabalhei em uma clínica de recuperação, onde recebi muita ajuda, aos 23 anos. Quando saí de lá, um ano depois, fui para um terraço e chamei três pessoas que também tinham saído da clínica para partilhar nossa experiência. Depois de um ano e meio, passamos para um salão maior, cedido pela Igreja. O grupo aumentou e a sala ficou pequena. Depois fomos para uma igreja, em Cachoeiro. Já eram 500 pessoas, mas o grupo havia perdido a característica de reunir só ex-usuários. Passei então a me reunir na sala de minha casa, aos 28 anos.  O grupo foi aumentando e meu sogro me cedeu uma sala, onde comecei a atender pessoas e a me especializar. Fiz cursos em vários lugares e países e participei de muitos congressos sobre dependência química. Sabia como parar, mas não sabia como transformar essa experiência em prática de cura. Onde aprendi mesmo foi aqui na Fundação Esperança. Tenho internos de 13 a 57 anos, viciados em maconha, cocaína e heroína.

ISTOÉ – O que difere sua clínica no Espírito Santo das demais?
Luciano

A clínica foi inaugurada em 1997, mas o trabalho começou em 1994. Fizemos os 12 passos da recaída, adaptados dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos. A dependência química é uma doença de sentimentos. Trabalhamos com a restauração e a reintegração da pessoa consigo mesma e em relação ao outro. Temos psicólogos, médicos, um professor de educação física especializado em desintoxicação. A partir do momento em que o dependente começa a curtir seu corpo, passa a acreditar que pode mudar. É obrigado então a fazer atividade física três vezes por semana. Também oferecemos um estudo da Bíblia, porque sem Deus não há saída. A estadia mínima é de 60 dias. Quando a pessoa ficar pronta, ela sai, não há limites preestabelecidos. Cada um tem um tempo, uma história. Estamos com 70% de recuperação.

ISTOÉ – O que se passa no íntimo de um dependente químico?
Luciano

O viciado perde o contato com o mundo porque perde a percepção. Passa a não compreender mais o que acontece a seu redor. Vive um isolamento emocional, de uma forma totalmente alienada. Só que não se dá conta disso e acha que está sendo rejeitado. Esse isolamento emocional é mantido pela dependência química, que dá uma falsa sensação de bem-estar.

ISTOÉ – Você acha que as clínicas efetivamente recuperam os viciados ou há muitas caça-níqueis?
Luciano

Há muitas que recuperam, existem ótimos profissionais. O Brasil está muito avançado em relação a outros países nessa área. Há uma quantidade de drogas muito grande na Europa, por exemplo, e eles não oferecem tratamentos de qualidade. Mas é verdade que aqui também existem clínicas que visam somente o lucro, embora não sejam muitas.

ISTOÉ – Você foi o único brasileiro a participar do seminário em Portugal, em Setúbal, no mês de setembro. Quais os resultados desse encontro?
Luciano

Eles conheceram minha clínica e me convidaram, mas pensei que era só uma participação. Só soube que ia dar um seminário uma semana antes. Tremi. Mas fui com a cara e a coragem e vi que eles não sabiam nada, embora já fizessem um trabalho de recuperação havia quatro anos. Firmamos um convênio e uma parceria: eles mandam profissionais para cá e nós mandamos os nossos para lá. Depois disso vem um de Setúbal se especializar. Me impressionou a oferta de drogas em Lisboa. Os traficantes andam de preto. A polícia vê e não faz nada.

ISTOÉ – Hoje, os traficantes são um exército altamente armado. Como você vê o futuro próximo do tráfico? Eles continuarão cada vez mais poderosos?
Luciano

Se a sociedade não se mobilizar para forçar o governo a elaborar uma lei que obrigue as escolas a conscientizar as crianças sobre os riscos das drogas desde pequenas, os traficantes vão ficar cada vez mais fortes. Se o tráfico aumenta, é porque tem gente comprando droga.

ISTOÉ – Os viciados de hoje são parecidos com os do seu tempo? O que mudou?
Luciano

Há uma diferença muito grande. Quando eu ainda usava, não havia tanta agressividade, era uma coisa mais pacífica. O mundo há dez anos era menos agressivo e o tráfico era diferente. Hoje, o cara cheira cocaína, pega uma pistola e vai para a rua. O que mudou foi o sistema, que ficou mais violento. Além disso, o vício está começando cada vez mais cedo. Mães me telefonam dizendo que o filho de 15 anos está quebrando tudo. Antigamente não era assim.

ISTOÉ – Qual deve ser o comportamento de um pai ao descobrir que o filho é usuário de drogas ou viciado?
Luciano

Deve chamá-lo para uma conversa e cativá-lo. Quando o dependente leva droga para casa, está pedindo ajuda. Precisa confiar nos pais, é uma situação que compromete seu comportamento, sua moral. A família tem de passar muita confiança para ele. E depois buscar ajuda profissional.

ISTOÉ – Você já sentiu medo de ter uma recaída?
Luciano

No início sim. Mas há dez anos que não sinto medo nenhum.