Depois de nove anos de pesquisa, grande parte revirando arquivos confidenciais de Fidel Castro em Cuba, a jornalista brasileira Claudia Furiati publicou uma biografia de um dos personagens mais controvertidos, amados e odiados do século XX (Fidel Castro. Uma biografia consentida, Editora Revan, dois volumes). Apesar do apoio oficial para a empreitada, ela disse ter encontrado muita resistência em setores do regime cubano, que temiam abrir a caixa de Pandora do comandante. Na pesquisa, a jornalista descobriu, por exemplo, que Castro teve oito filhos de várias mulheres, fato que pouca gente sabia, mesmo em Cuba. Nesta entrevista exclusiva a ISTOÉ, Furiati fala dos bastidores do projeto e das dificuldades que teve para concluí-lo.

ISTOÉ – Por que uma biografia de Fidel Castro agora? O que existe ainda para ser revelado sobre o líder cubano?
Claudia Furiati –
Existiam e existem vários clichês sobre Fidel Castro: que ele era filho de latifundiário, que estudou em colégio jesuíta e virou comunista na universidade. Mas não havia nada documentado. E muitos pontos permaneciam obscuros. Nas minhas pesquisas descobri, por exemplo, que ele sempre teve sérias divergências com os comunistas. Na verdade, Fidel nunca foi comunista; ele sempre foi um subversivo. Mesmo quando abraçou o modelo soviético, tentou preservar a independência em relação a Moscou. O caso de Angola é um bom exemplo. Apesar de a União Soviética ter apoiado os marxistas do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), a decisão de Havana de enviar tropas para defender o governo angolano foi feita à revelia dos interesses soviéticos. A URSS teria preferido a via diplomática.

ISTOÉ – Mas então por que ele manteve o regime de partido único, mesmo depois do colapso da URSS?
Furiati –
Foi uma importação soviética. Quando o regime se institucionalizou em 1975, o modelo de partido único era o selo da cooperação soviético-cubana. Mas não creio que Fidel acredite que esse tipo de regime seja a única alternativa para uma sociedade socialista. Ele sabe que os meios para essa sociedade podem variar. No caso da revolução cubana, havia o clima da guerra fria e, ainda hoje, paira a ameaça de uma invasão militar norte-americana. No dia em que for possível abrir novos partidos em Cuba, eles serão criados.

ISTOÉ – Mas isso depende exclusivamente da vontade de Fidel…
Furiati –
Da vontade dele e do Raúl também… (Raúl Castro, irmão de Fidel, ministro da Defesa e “número 2” do regime). O regime se mantém até hoje porque existe uma corporação militar rígida e com raríssimas dissidências.

ISTOÉ – Segundo o seu livro, Fidel tem oito filhos de mulheres diferentes. Isso é um fato pouco conhecido, mesmo em Cuba, não?
Furiati –
Essa foi uma das descobertas que fiz. Durante muito tempo, não sabia como lidar com essa informação, porque Fidel preserva muito sua vida pessoal. Descobri que uma das razões pelas quais ele nunca se casou de novo ou declarou abertamente uma relação é por que teve um trauma muito grande do primeiro casamento, com Mirta, mãe do primogênito, Fidelito. A família dela era ligada ao regime Batista (Fulgêncio Batista, ditador cubano derrubado por Fidel em 1959); o irmão de Mirta, Rafael, trabalhava para o serviço secreto. Quando Fidel foi preso, depois do fracassado assalto ao quartel de Moncada (26 de julho de 1953), começaram as pressões para afastá-lo de Mirta. Aí, o casamento acabou. Depois disso, ele decidiu não mais oficializar uniões.

ISTOÉ – O que significa uma biografia “consentida”?
Furiati –
Em 1995 encaminhei o projeto da biografia a Jesús Montané, já falecido, que era secretário particular de Fidel. Ele me pediu um tempo e, três meses depois, deu o OK e disse que eu teria acesso aos arquivos pessoais do comandante. Mas Fidel não queria abrir certas coisas. Ele não dizia sim nem dizia não. Então, veio a discussão se seria uma biografia autorizada ou não autorizada. “Autorizada, nem pensar”, foi a resposta de Montané, porque seria encarada como biografia oficial. Ótimo, pensei, porque eu também não quero isso, mas sabia que não seria uma biografia não autorizada, porque eu iria ter acesso a arquivos. Aí, Montané disse que Fidel tinha dado uma idéia: por que não uma biografia consentida? Achei a definição ótima para demonstrar a sutileza do projeto.

ISTOÉ – E, dentro do regime, quem incentivou e quem boicotou o projeto?
Furiati –
A pessoa que mais incentivou foi o Piñeiro (comandante Manuel Piñeiro, o Barbarroja, ex-chefe dos serviços de inteligência cubanos), que morreu em 1998. Piñeiro defendeu o projeto, inclusive diante de pessoas do Ministério do Interior que tinham desconfianças. E havia muitos riscos. Eu me sentia livre demais, ao contrário do que as pessoas possam pensar. Poderia acontecer qualquer coisa, até mesmo desaparecerem com os arquivos do computador. Porque eu conheço bem o serviço secreto cubano; ele tem um poder muito grande e faz tudo pela revolução. Se alguma coisa não interessa ao regime, ele elimina. Então, por mais garantias que eu tivesse por causa da minha amizade por Cuba, nada me garantia que, depois de nove anos de trabalho, não viessem estragar tudo. Quando estava escrevendo o livro, eu procurava o próprio Fidel para pedir definições. “Fique calma, tudo sairá bem”, ele disse. Cheguei à conclusão de que ele estava certo, porque o livro deixa claro minha simpatia por Cuba, mas acho que consegui preservar a seriedade e a precisão.