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Se há mais de uma criança em casa, o indigesto tema já foi colocado à mesa. Às vezes por algum desavisado, que pergunta, despretensiosamente, qual o filho predileto da família. Ou pelo próprio suposto preterido, que acusa, sem dó: “Você gosta mais do meu irmão do que de mim.” Na literatura, a figura do filho rejeitado é recorrente e, não raras vezes, vem acompanhada de um final trágico. Que o diga Abel, morto pelo irmão Caim após se sentir desvalorizado diante do caçula. O temor de gerar um conflito entre irmãos, talvez tão fatal quanto o célebre embate bíblico, faz os pais tremer toda vez que o assunto vem à tona. A máxima “para mim meus filhos são iguais” tornou-se um escudo para dissipar esses dissabores familiares. Mas será realmente possível gostar do mesmo jeito de crianças que, muitas vezes, são quase o oposto uma da outra? Quando a filha mais velha “tem o jeitinho da mamãe” e a mais nova “puxou o temperamento do pai”, a relação vai ser realmente igual?

Durante muito tempo esses questionamentos habitaram apenas a mente angustiada de pais e mães – temerosos por não saber estabelecer uma relação harmoniosa entre os filhos. A boa notícia é que a busca por respostas a essas dúvidas ultrapassou o âmbito doméstico e ganhou status científico. E, para alívio dos progenitores, as pesquisas têm constatado que é natural ter um preferido. Na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, cientistas observaram, por três anos, as relações familiares de 384 pares de irmãos e seus pais. Constatou-se que 65% das mães e 70% dos pais pendiam para uma das crias. “A melhor palavra para definir esse fenômeno não é favoritismo, mas afinidade”, esclarece Ana Olmos, psicanalista especializada em crianças, adolescentes e família. “É natural ter mais afinidade com um filho do que com outro. O que não significa amá-los de forma diferente.” Tampouco que tal sintonia estará sempre acompanhada de mais benefícios. “Muitas vezes, por se sentirem culpados por esse sentimento, os pais penalizam o filho com o qual têm um vínculo mais forte”, completa Ana.

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EQUILÍBRIO
Mariah e Vinícius têm espaços individuais na agenda da mãe, Fabiana, e do padrasto, Henrique

O que move a predileção não é necessariamente a semelhança. O processo pode estar fundamentado no sentimento contrário, o de complementaridade. Nesses casos, os pais apreciam no filho a característica que não possuem, mas gostariam de ter. Por exemplo: a mãe economista demonstra maior afeição pelo filho pianista do que pela filha administradora porque sempre sonhou tocar algum instrumento, mas nunca conseguiu. Além disso, a preferência não necessariamente é a mesma por toda a vida. Às vezes, o predileto da infância perde o posto para o irmão na adolescência, ou mesmo na fase adulta.

Também por várias décadas apostou-se em uma visão simplista da teoria freudiana do complexo de Édipo para explicar as relações entre progenitores e prole. O conceito, desenvolvido por Freud, designa a relação do filho de amor à mãe e ódio ao pai. E se popularizou na crença de que as mães naturalmente prefeririam os filhos, e os pais, as filhas. “Hoje sabemos que não é isso o que acontece”, diz a professora Leila Salomão Tardivo, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). “Um pai pode se sentir mais vinculado à filha, mas isso ocorre por afinidade, não por ela ser do sexo oposto.”

Não foi Édipo, mas o amor à gastronomia que fez Miréia Vila Garcia, 25 anos, buscar desde pequena a companhia do pai, o chef Allan Vila Espejo, 53 anos. “Na infância, em vez de desenho animado, eu assistia ao programa da (cozinheira) Ofélia e queria brincar nas cozinhas dos restaurantes do meu pai”, lembra Miréia, que seguiu a profissão de Espejo. E a sintonia da dupla vai além das panelas. Os dois também têm personalidades semelhantes – são organizados, pontuais e gostam de criar coisas. Situação parecida, mas com a combinação inversa, é a do estudante de medicina Vinícius Leduc, 24 anos. Ele se considera muito mais parecido com a mãe, Eleusa, 53 anos, do que com o pai, Mauro, 57 anos. “Cheguei até a tentar vestibular para odontologia, área de formação da minha mãe, mas optei por medicina.” Se a profissão não será a mesma, o gosto pela leitura e pelo cinema segue parecido. “Já meu pai e meu irmão não curtem muito. Livro, para eles, só se for técnico.” O jovem brinca que, em casa, ele é o “filho da mãe”, e o irmão mais velho, “o filho do pai”.

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EXIBIDA
Para chamar a atenção, a pequena Laura (ao fundo) costuma roubar a maquiagem da irmã Nathália

Desde pequenos, os irmãos são capazes de perceber que os pais estabelecem relações diferentes entre eles. E isso não os incomoda. Pelo menos é o que defende a pesquisadora Laurie Kramer, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Entrevistando 61 meninos e meninas entre 11 e 13 anos, Laurie constatou que, uma vez que identificavam um tratamento diferente entre elas e seus irmãos, 75% das crianças eram capazes de compreender por que isso acontecia. “Interessa mais às crianças um tratamento justo do que um tratamento igual”, disse à ISTOÉ a especialista. Por isso, não há nenhum problema se o pai leva só o filho para andar de bicicleta, caso a filha deteste essa atividade e prefira passar essas horas brincando na casa de uma amiga. O problema se instala, explica Laurie, se essa menina começa a sentir que apenas o irmão está recebendo atenção, sem que haja nenhuma razão aparente para essa preferência. “Isso sim faz a criança se sentir mal.” Contornar essa situação é simples. Basta que, do mesmo modo como pai e filho tiveram seu momento de diversão sobre rodas, a filha também tenha o direito de escolher uma atividade de que goste para fazer junto aos pais.

Pode ser que na infância a criança não absorva bem essas diferenças. Mas, se não houve excessos nem negligência por parte dos genitores, essa situação pode ser superada sem maiores dificuldades. A estudante Fernanda Cansanção, 21 anos, só foi entender o que os pais diziam depois de adulta. “Quando eu tinha uns 8 anos, percebi que eles me deixavam mais solta e ficavam em cima da minha irmã Laura, dois anos mais nova do que eu”, relembra. “Isso me incomodava, comecei a me sen­tir preterida.” Quando os questionava, ouvia que eles davam mais atenção para a irmã porque ela era menos madura e mais dependente. “Quando era criança, eu não entendia isso, mas hoje vejo que faz sentido”, diz. Depois de muita briga na infância, as irmãs, agora adultas, dividem um apartamento no Rio de Janeiro. “A Laura se tornou uma das minhas melhores amigas. A gente compartilha tudo, até as roupas, o que era impensável quando éramos pequenas”, diz Fernanda.

Quando os pais não conseguem administrar os anseios e as vontades dos filhos e deixar claro por que eles têm espaços diferentes dentro de casa, o equilíbrio doméstico fica ameaçado. E, ao contrário do que possa parecer, usar dois pesos e duas medidas para lidar com as crianças pode causar danos para ambas – tanto a favorecida quanto a preterida. Em seu livro “The Favorite Child” (“A criança favorita”, em tradução livre), a psicóloga americana Ellen Liby garante que, nessa guerra, não há vencedores. Até mesmo quem à primeira vista levou a melhor é prejudicado. “Esse ‘menino de ouro’ aprende a ter todos os seus desejos atendidos pelo pai ou pela mãe e se torna um mestre na arte da manipulação”, fala. Outras vezes, o preferido pode se sentir sufocado pelo excesso de atenção. Já o filho que viu todos os benefícios irem para o irmão cresce inseguro. Se nem os pais o amaram, como conseguirá a atenção das outras pessoas?

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TRÉGUA
Depois de muita briga e desentendimentos, as irmãs Fernanda (à esq.) e Laura dividem a casa e as roupas

São diversos os distúrbios comportamentais que podem ser gerados quando a criança percebe que está sendo deixada de lado pelo pai ou pela mãe, sem nenhuma explicação. Após analisar 136 pares de irmãos, Clare Stocker, do departamento de psicologia da Universidade de Denver, nos Estados Unidos, anotou os problemas mais comuns. “Agressividade e comportamento destrutivo e antissocial apareceram com maior frequência entre as crianças que falavam que os pais favoreciam o irmão”, disse à ISTOÉ. Nos questionários aplicados com as crianças, porém, não foi possível identificar características que revelassem o porquê da preferência. “Ao que parece, o favoritismo está mais ancorado nas características psicológicas que em diferenças de idade, ordem de nascimento ou sexo”, observa Clare.

Isso, porém, ainda é um ponto de discórdia entre os pesquisadores. Muitos garantem que, sim, a idade e a ordem de nascimento são fatores determinantes para a preferência dos progenitores. “Ser ou não o primeiro a nascer, por exemplo, implica diferenças no investimento dos pais na criação e na necessidade de competir por atenção no ambiente familiar”, falou à ISTOÉ Catherine Salmon, psicóloga da Universidade de Redlands, nos Estados Unidos. Quem tem mais de um filho, em especial com grande diferença de idade, sabe que os mais novos são mestres nas artimanhas para chamar a atenção. A assessora Soraia Nigro, 45 anos, acostumou-se às peripécias da filha Laura, 7 anos, para se sobrepor à irmã Nathália, de 19 anos. Enquanto todos os olhares da casa não estão voltados para ela, a pequena não descansa. “Se a Nathália vem conversar comigo, a Laura imediatamente vem também e interrompe a irmã”, conta. “Sem contar as invasões que promove ao quarto da mais velha para usar os perfumes e a maquiagem dela.” Nathália, conta a mãe, era bem diferente da irmã mais nova quando tinha essa idade. “Ela nem imaginava o que era perfume ou maquiagem e era muito mais quieta”, diz Soraia.

Histórias como as das irmãs Nigro confirmariam a tese de Catherine de que é impossível negar que a ordem de nascimento não influencie na escolha dos progenitores. Em especial nas famílias constituídas por três crianças. “Meus estudos mostram que os pais dão menos atenção ao filho do meio, especialmente quando todas as crianças são do mesmo sexo”, diz. O jogo muda quando este é do sexo oposto aos demais. Nessas situações, ele entra na briga pela atenção dos pais com as mesmas condições do caçula e do primogênito. Catherine lançou em agosto, nos Estados Unidos, o livro “The Secret of Middle Children” (“O segredo do irmão do meio”, em tradução livre), no qual enumera características comuns aos filhos “sanduíche”, como são conhecidos. “A menor atenção dos progenitores os faz desenvolver mais relações de amizades e a valorizá-las mais”, constata.

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SINTONIA
Vinícius e Eleusa têm profissões semelhantes e gostam dos mesmos filmes e livros

A ancestralidade também é evocada por alguns cientistas para explicar o favoritismo entre os filhos. Quem segue a abordagem darwiniana, por exemplo, acredita que, por trás das preferências dos pais, está o potencial de sucesso reprodutivo de cada filho. “O mais saudável e mais forte é o escolhido”, disse à ISTOÉ Frank Sullo­way. Teoria bastante contestada no mundo moderno, uma vez que, não raro, o filho mais frágil recebe mais atenção que os irmãos.

Se a ciência admite o favoritismo, porém, não o coloca em um patamar de tolerância. “Os critérios usados dentro de casa devem ser os mesmos para os todos os filhos”, esclarece Ana Olmos. Até quando eles são de casamentos diferentes. Nesses casos, não raro a criança tenta tirar a autoridade da mãe ou do pai não biológico. “Isso não pode ocorrer. Os filhos devem obedecer à constelação familiar na qual estão inseridos”, diz a psicoterapeuta. E isso deve começar desde os primeiros dias em que a nova família é constituída. Em seu terceiro casamento, a comerciante Fabiana Abbas, 34 anos, explica com naturalidade para os filhos a relação deles com o novo pai, o publicitário Henrique Visconte, 37 anos, com quem mora há dois anos. O segundo marido de Fabiana é pai de Mariah, 9 anos, mas não de Vinícius, 13 anos, filho de outro relacionamento. “Mas o Vinícius sempre chamou o Paulo, meu ex-marido, de pai”, diz. A mesma coisa acontece com Henrique. “O que a gente passa para as crianças é que agora essa é a nossa família.” Não é preciso sentir culpa por ter mais afinidade com um filho do que com outro. Mas o recado dos especialistas para os pais é claro. O mais prudente é manter a conduta de nossos pais e avós: negue, com convicção, que você tem predileção por algum. 

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