Entre a zero hora do sábado 2 e a meia-noite do domingo 3 foram assassinadas na Grande São Paulo 64 pessoas. Exatamente o dobro do número de homicídios registrados em Nova York durante todo o mês de fevereiro. A estatística é macabra, mas, mesmo assim, no governo paulista o clima é de vitória. A redução no número de sequestros de 48 para 24 entre janeiro e fevereiro e os bons resultados policiais em casos de repercussão serviram para reanimar uma tropa até então abatida e desacreditada pela ação de criminosos cada vez mais ousados. O trabalho unificado das polícias Federal, Civil e Militar deu certo. As prisões de Itamar Messias dos Santos, José Édson da Silva, Marcos Roberto Bispo dos Santos (Marquinhos), Rodolfo Rodrigues de Santos Oliveira (Bozinho) e de um menor conhecido como Alex praticamente liquidam uma quadrilha da favela Pantanal, especializada em sequestros rápidos, e tecnicamente esclarecem o assassinato de Celso Daniel, ex-prefeito de Santo André. A prisão de Wanderson Nilton de Paula Lima, o Andinho, representa um duro golpe no crime organizado e coloca a polícia muito perto de esclarecer o assassinato de Toninho do PT, ex-prefeito de Campinas, morto em 10 de setembro. “Estamos em uma guerra difícil, mas a polícia está vencendo uma batalha por dia”, elogiou o governador Geraldo Alckmin, na terça-feira 5.

Na mesma terça-feira, em uma praça de pedágio da rodovia SP – 75, conhecida como Castelinho, próximo a Sorocaba, cerca de 100 policiais protagonizaram uma ação cinematográfica. Interceptaram um comboio formado por três carros e um ônibus, trocaram tiros e deixaram um saldo de 12 mortos. Todos eles, segundo a polícia, seriam membros do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que vem desafiando o Estado nos últimos 12 meses e se preparava para roubar R$ 28 milhões de um avião no aeroclube de Sorocaba. A ação foi fulminante. Dos encurralados, não sobrou nenhum bandido para contar a história e a polícia não sofreu nenhuma baixa. Apesar do pesado armamento encontrado no ônibus – dois AR-15, um FAL762, um MAK (similar ao AK-47), duas escopetas calibre 12, uma submetralhadora UZZI 9 milímetros, duas pistolas 380, duas pistolas 765, uma pistola .40, uma 9 milímetros, muita munição e coletes à prova de balas –, apenas um PM foi ferido de raspão na cabeça. Três bandidos conseguiram furar o bloqueio e um deles foi preso minutos depois sem sofrer nenhum arranhão, graças à eficiência de um cão rottweiler da Polícia Militar.

Inteligência – A operação de cerco ao comboio do PCC começou a ser traçada uma semana antes, a partir de informações colhidas pelo serviço secreto da PM. Os telefones celulares usados por membros do PCC no interior dos presídios paulistas foram grampeados e, dos diálogos captados, vieram à tona os planos do grupo para o assalto ao avião. “Foi uma ação feita com inteligência. Tivemos a informação antes e conseguimos nos antecipar”, afirma o secretário de Segurança, Saulo Abreu. “É muito positivo o fato de a polícia usar a inteligência de forma mais ativa. Mas não passa pela minha cabeça que uma ação com 12 mortos seja sinônimo de eficiência. É preciso ter claro que bandido preso e bandido morto são coisas bem diferentes”, adverte Paulo Mesquita Neto, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e secretário executivo do Instituto São Paulo Contra o Crime. “É claro que a polícia está comemorando, mas o número de mortes tirou o brilho da ação. Queremos uma polícia mais competente”, afirma o ouvidor das polícias de São Paulo, Fermino Fecchio Filho.

Certo de que a demonstração de força policial arranca aplausos da população, o governador Geraldo Alckmin mantém afinado um discurso duro: “Se o criminoso se jogar no chão e erguer os braços, a polícia vai prendê-lo. Agora, se estiver armado com fuzil e prestes a colocar em risco a vida do policial, é evidente que a reação será outra.” É claro que uma sociedade exposta a 24 sequestros por mês e 64 homicídios em um final de semana clama por uma polícia mais presente e que aja com rigor. No entanto, como lembra o coronel da reserva José Vicente da Silva Filho, estudioso de segurança pública do Instituto Fernand Braudel, “a polícia precisa ser dura, mas deve levar em conta o limite da legalidade”. É por essa razão que na quarta-feira 6 o Ministério Público resolveu investigar a operação contra o comboio do PCC. Há dez anos, quando o governo afrouxou os controles internos, a PM promoveu o maior massacre de presos da história do País, condenado internacionalmente: 111 mortos no Carandiru. Na quinta-feira, o comando da PM encaminhou os policiais que participaram da ação para um programa de recuperação psicológica, onde devem permanecer por três meses.

Além dos limites impostos pela lei, o ouvidor da polícia paulista alerta para uma outra questão fundamental. “Não se pode esquecer que os bandidos só se tornaram tão ousados e organizados por causa da conivência e omissão da própria polícia, que em geral ganha pouco e arrisca a vida para defender a sociedade”, afirma Fecchio Filho. Em São Paulo, o salário médio de um soldado da PM é de R$ 1,2 mil e o de um investigador é de R$ 1,5 mil. “Defendo melhores salários para a polícia, mas entendo que o mesmo rigor usado contra os bandidos deve ser usado para combater os policiais corruptos”, recomenda o ouvidor.

A preocupação faz sentido. Aproximadamente um mês depois do assassinato do prefeito Toninho do PT, policiais de Campinas foram até Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, e mataram quatro supostos sequestradores. Quando Andinho foi preso, a polícia ficou sabendo que um dos policiais que participaram da chacina no litoral, soldado PM Ronaldo Azevedo Góes, era ligado ao bandido e que entre os mortos estavam dois membros da quadrilha acusada de ter matado o prefeito. Ou seja, além de facilitar a ação dos criminosos, a polícia bandida queima arquivos, dificultando o esclarecimento dos crimes, o que gera impunidade.

Monstros – A polícia começou a recuperar a auto-estima com a prisão dos sequestradores do publicitário Washington Olivetto e, em 26 de fevereiro, passou a recuperar prestígio com a prisão de Andinho, tido com um dos bandidos mais perigosos e violentos do Estado de São Paulo. Ele construiu um império com o produto de seus crimes. Só a chácara em que foi preso em Itu está avaliada em R$ 600 mil. Além disso, tem propriedades em Campinas e região. Andinho é apontado como o autor de pelo menos 12 sequestros nos últimos seis meses, vários assassinatos e tinha o hábito de torturar suas vítimas. “Ele é sangue ruim”, disse o delegado Marco Antônio Ribeiro de Campos. “Ruim não, o sangue dele é péssimo”, afirmou a ISTOÉ um membro da Pastoral Carcerária que esteve com o preso. Perguntado se estava sendo vítima de torturas, Andinho respondeu: “Esses caras não sabem torturar. Estou com as dez unhas intactas. Minhas vítimas raramente saíam assim”, disse, mostrando as mãos. O que relaciona Andinho à morte do prefeito Toninho do PT é a arma. O bandido confirmou ter sido o autor do sequestro do garoto E.R.R, 14 anos, libertado após pagamento de resgate. No local do sequestro foram encontradas cápsulas disparadas de uma mesma pistola 9 milímetros usada para matar o prefeito.

A ousadia e o sadismo de Andinho não são fatos isolados no contexto da criminalidade instalada em São Paulo. O deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), histórico defensor dos direitos humanos, disse ter ficado chocado com a frieza do menor Alex ao relatar como matara o prefeito de Santo André, Celso Daniel. Alex comia um sanduíche enquanto descrevia como disparara nove tiros contra o prefeito. “Pedi para ele cobrir a cabeça com uma jaqueta e atirei na nuca. Ele caiu meio de joelhos e dei outros dois tiros nas costas. Quando ele caiu no chão, dei mais uns quatro tiros no rosto”, disse o garoto de 16 anos ao delegado Édson Santi. “Ele descreveu a cena como se estivesse se referindo à morte de uma barata”, lembra o delegado.

Crime comum – A polícia chegou a esmiuçar a vida de empresários com negócios na Prefeitura de Santo André e até de amigos do prefeito Celso Daniel, mas hoje todas as linhas de investigação convergem para a hipótese de crime comum. A prisão de sete bandidos, o confronto das declarações por eles prestadas e a confissão de Alex praticamente encerram o inquérito como um sequestro seguido de execução por motivo banal. Por essa versão, os bandidos não sabiam que tinham sequestrado o prefeito e, ao perceberem a repercussão do crime, optaram pela eliminação da vítima para evitar que fossem reconhecidos. Todos eles são da favela Pantanal, especializados em sequestros com desfecho rápido, cuja finalidade era arrancar das famílias das vítimas entre R$ 50 mil e R$ 100 mil. Celso Daniel teria sido escolhido por acaso. A quadrilha imaginou que ele era o dono da Pajero que pertence e era dirigida pelo empresário Sérgio Gomes da Silva, que chegou a ser exaustivamente investigado.

Seis criminosos, ocupando uma Blazer e um Santana, interceptaram a Pajero e o arrancaram à força, deixando o empresário para trás. O prefeito foi levado para a favela Pantanal. Lá, retirado da Blazer e colocado no porta-malas do Santana, que o deixou no cativeiro de Juquitiba. Um dia depois, seu corpo foi encontrado crivado de balas, numa estradinha de chão batido, a poucos quilômetros do cativeiro. Foi uma execução à queima-roupa, sem que a vítima tivesse nenhuma chance de defesa. Depois do sequestro, a quadrilha se dividiu, deixando a guarda do prefeito com José Édson da Silva, preso há duas semanas na Bahia, Marcos Roberto Bispo dos Santos, o Marquinhos, e Alex.

Itamar Messias dos Santos, um dos chefes da quadrilha, afirmou que, tão logo soube que o bando sequestrara um prefeito, deu ordem para libertá-lo. “Solta o ‘torro’(vítima). É sujeira”, teria ordenado, num recado deixado na secretária eletrônica do celular usado por José Édson da Silva. Segundo outro bandido, Rodolfo Rodrigues, o Bozinho, Itamar chegou a conversar com Édson e este teria insistido na execução para evitar que a quadrilha fosse identificada. “Ele viu nossa cara!”, teria argumentado Édson. Em seu depoimento, Édson sustenta que esperou no carro, enquanto Alex, armado com a pistola 9 milímetros, obrigava o prefeito a andar pela estrada. “Foi o Alex que decidiu matar”, afirmou Édson. O argumento, na verdade, pode esconder uma estratégia jurídica para tentar livrar o resto da quadrilha de uma pena pesada. Como menor, Alex ficará recolhido na Febem, onde cumprirá uma pena máxima de três anos. Dos homens que participaram do sequestro, apenas dois, Ivan Rodrigues da Silva, o Monstro, e Elcyd Oliveira Brito, o John, ainda estão foragidos. O chefe da quadrilha seria Monstro, condenado por roubo, foragido da Penitenciária de Sorocaba e apontado pela polícia como integrante do PCC.