chamada.jpg
NO PASSADO
Até agora, os moradores da ilha dependiam de velas. Só a Marinha tinha geradores

O pescador Dionato de Lima Eugênio, 69 anos, conhecido como seu Naná, pela primeira vez na vida toma banho quente sem latinha. Na simplicidade de sua vida inteira, ele nem sequer sabia que pertencia a um grupo de excluídos, constituído por 1,3% de domícilios brasileiros que vivem sem energia elétrica. “Não achei que viveria esse prazer”, conta seu Naná. Assim como ele, seu primo, Joel Rosa de Lima, 96 anos, ou mesmo o neto, Cauã Gouvêa, de apenas 4 anos, viviam igualmente alheios a esse item básico da vida moderna. Três gerações de uma mesma família descendente de escravos africanos que, junto a outros 360 moradores de uma comunidade quilombola da Ilha da Marambaia, no litoral fluminense, atravessaram mais de 100 anos nesse atraso monumental, apesar de estarem a apenas 113 quilômetros da cidade do Rio de Janeiro. A energia elétrica chegou à Marambaia no dia 8 de setembro.

Um dos primeiros itens adquiridos pelos moradores da comunidade foi a televisão. “Meu marido comprou um mês antes da inauguração. Ela ficou ali desligada até o dia em que a luz chegou”, conta Denize Eugênio. Feliz proprietária também de uma moderna geladeira, ela revela que agora até tevê por assinatura eles têm. “Dividimos entre meus quatro irmãos e ficou baratinho.”As casas eram iluminadas à vela. Quase 20 pacotes com cerca de oito unidades por mês, sob o custo aproximado de R$ 70. Somados os valores, a quantia é muito superior ao que vão pagar, agora, com o desconto da tarifa social. Durval Alves, 57 anos, hoje dono de uma geladeira e uma tevê desabafa: “Nosso presente hoje é o passado de vocês.”

img.jpg
ANSIEDADE
A tevê de Denize Eugênio foi comprada um mês antes de a eletricidade chegar

A chegada da energia elétrica revolucionou a rotina do povoado, que traz a marca da escravidão no DNA. Os 96 anos de Joel Rosa de Lima não impedem que ele se lembre bem da história de seu povo. Sua avó foi escrava nas fazendas do comendador Joaquim José de Souza Breves, conhecido como o “rei do café” no Brasil Imperial e dono da Ilha da Marambaia de 1856 até sua morte, em 1889 – um ano depois da abolição da escravatura. De acordo com o advogado e pesquisador Aloysio Clemente Breves Beiler, o comendador foi o maior proprietário de escravos e terras do século XIX, chegando a ter mais de seis mil cativos. Após sua morte, os escravos ali ficaram e, na sequência, seus filhos, netos e bisnetos, todos vivendo da pesca e praticamente esquecidos pelo poder público. Desde 1971, a ilha é administrada pela Marinha do Brasil, que possui um centro de treinamento para Fuzileiros Navais, o Centro de Avaliação da Ilha da Marambaia (Cadim), o qual abriga 328 funcionários.

Entender por que a eletricidade, cujo uso corrente foi iniciado no Brasil em 1879, demorou mais de um século para chegar até as casas da Marambaia é difícil. Até porque a própria Marinha precisava gastar aproximadamente R$ 74 mil mensais com geradores a óleo para suprir suas necessidades. Os moradores achavam que era impossível levar cabos de alta tensão até uma ilha. “A gente nem tinha esse conhecimento. Quando começaram a vir muitos pesquisadores de universidades para cá é que nos informamos”, diz seu Naná. De acordo com Aurélio Pavão de Farias, diretor nacional do programa Luz para Todos, o pedido de instalação de cabos elétricos na ilha foi feito em 2005, mesmo ano em que seu Naná, atual líder da associação de moradores, foi a Brasília pedir ajuda para o acesso a luz elétrica e, também, apoio ao processo judicial em que tentam titular uma parte da ilha para a comunidade quilombola. “Viajei de avião antes de ter luz em casa”, diverte-se ele. Mas, parece, o trabalho só andou mais rápido depois que o ex-presidente Lula passou férias na ilha, nessa época. As obras custaram R$ 10,5 milhões e foram custeadas pelo governo federal em parceria com a Ampla, concessionária de energia.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

img1.jpg

grafico.jpg

Agora, os quilombolas acompanham novelas e iluminam o quarto com um simples toque no interruptor, mas ainda estão longe da independência. Dependem muito da ajuda da Marinha, que proporciona o transporte de todos (militares e civis) até o continente – viagem que dura cerca de uma hora de barco. Também é por meio dos militares que os moradores têm acesso à única enfermaria do local – não há hospital. O convívio é pacífico, mas nem sempre foi assim. Um dos motivos de conflito é a comemoração do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. De acordo com os moradores, foi com muita insistência que eles conseguiram realizar a festa. A Marinha nega a proibição, mas contesta a identidade das famílias como quilombolas. Para o Ministério Público, no entanto, não há dúvida: “Por critérios históricos e antropológicos eles se enquadram”, diz o procurador estadual Daniel Sarmento. A luz chegou, mas as divergências continuam.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias