Tudo começou com o desejo de inflar os músculos para entrar na Marinha. Era a melhor alternativa para quem planejava virar um Robin Hood do tráfico, na época em que a classe média fazia vista grossa aos traficantes e a seus “trabalhos assistenciais” nas favelas. Anderson Sá tinha 17 anos, foi reprovado e acabou por estudar baixo e percussão. Daí nasceu o Afroreggae, banda que comemora 13 anos com o novo CD Nenhum motivo para a guerra (Geléia Geral). Não faltam motivos para comemorar. O premiado documentário Favela rising, sobre a trajetória do grupo, feito pelos americanos Jeff Zimbalist e Matt Mochary, é bem cotado para o Oscar. A festa continua em fevereiro, quando a banda abrirá o show dos Rolling Stones, no Rio de Janeiro. Em abril serão lançados dois DVDs assinados por Cacá Diegues, um sobre a banda e outro com o show de lançamento do novo CD no Circo Voador.

Se o primeiro CD foi um libelo contra a violência carioca, o segundo vem mais melódico. Mas a intenção é a mesma: “Queremos ajudar as pessoas a refletir melhor sobre nossa realidade”, diz Anderson, 27 anos. Caetano Veloso, padrinho da banda, entra no CD com Haiti. “Eles evoluíram para uma modalidade toda própria de hip-hop, num estilo de música editada que, ao vivo, parece irreal de tão precisa”, elogia. Caetano avalia o salto de qualidade do grupo. “Os rapazes agora relaxaram e apresentam números mais cantáveis. Eles dão uma lição de resistência aos desfavorecidos e de obstinação a outros grupos que também procuram responder à miséria com criatividade.”

Os louros são apenas perfumaria, se comparados à verdadeira razão de ser dos 13 componentes do grupo. “Eles conseguem algo que parecia impossível: disputar os jovens com o tráfico”, aplaude o escritor e jornalista Zuenir Ventura, que está no Favela rising e os acompanha desde o início. Hoje trabalham com 2.500 jovens carentes em 61 projetos por nove regiões, sendo quatro favelas. São oficinas de percussão, dança, teatro, circo, canto, informática e basquete de rua.

Mas as dificuldades são de toda ordem. Falta dinheiro e o risco da proximidade com o crime é permanente. Nada capaz de amortecer o gás dessa turma, que já tem agendadas turnês pela Inglaterra, Áustria e Índia em março, e pelo Brasil em abril. O estímulo começa pelo líder, cuja toca de crochê disfarça a cicatriz na nuca, resultado da cirurgia feita em 2003. Anderson caiu da prancha de surfe e sofreu uma fratura na coluna. Ficou tetraplégico e o diagnóstico inicial era de que não voltaria a andar. Quatro dias depois, para surpresa dos médicos, dava os primeiros passos. “Troquei o surfe pelo pingue-pongue”, brinca. Esbanja ritmo e energia nas apresentações e realiza seu objetivo de servir de modelo para a juventude favelada.

O exemplo começa em casa. Alguns dos componentes do Afroreggae são ex-traficantes. Adriano Soares de Souza, 28 anos, entrou para o crime aos 20. Começou vendendo no varejo em Duque de Caxias e chegou a gerente-geral da boca de fumo de Vigário Geral. “Todos que moram na favela e viram traficantes têm a ilusão de que vão ter dinheiro, roupas boas e mulheres. Ninguém pensa na morte”, testemunha. Na prática, o que entra de dinheiro sai rápido, tão rápido quanto morrem os amigos. Adriano já tinha ouvido falar do Afroreggae e resolveu procurar Anderson, um amigo de infância. “Larguei o tráfico há três anos e a vida melhorou demais. No crime estamos sujeitos a qualquer coisa.” André Santos da Cunha, 23 anos, entrou para o tráfico aos 18 e se afastou há cinco meses. Aprende percussão e hoje faz força para esquecer as cenas de violência que presenciou. “É uma lavagem cerebral.”