Espelhados em adultos desempregados que, a exemplo do que se vê na Europa, são donos de habilidades circenses, garotos esfarrapados de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro têm invadido os semáforos fazendo desajeitados malabarismos com bolas de tênis, na tentativa de sensibilizar os motoristas e ganhar alguma moeda em troca. A cena típica, que tanto comove quanto constrange, há tempos rondava a cabeça de Francisco Bosco, o talentoso letrista carioca de 26 anos – filho do compositor João
Bosco, 56 –, que desde 1997 vem estabelecendo uma profícua e
agora consolidada parceria com o pai. O resultado das imagens nada parecidas com o que se vê em Londres ou Paris está na faixa-título de Malabaristas do sinal vermelho, 22º álbum da carreira de João Bosco, incluindo discos ao vivo e um projeto especial. Não seria exagero afirmar que a canção já se candidata a um clássico da música brasileira. A letra
é uma poesia do concreto favelado, um retrato belo e cruel das fraturas expostas da sociedade urbana brasileira, apoiada numa melodia tão
nobre quanto as cordas inspiradas em Villa-Lobos, influência permanente no trabalho do mineiro de Ponte Nova, há 30 anos radicado no Rio. “Quando de noite as pupilas/da pedra dilatam/os anjos partem armados/em bondes do mal/…penso nos malabaristas/do sinal vermelho/que nos vidros fechados dos carros/descobrem quem são”, dizem os versos em certo trecho cantados pelo Coral da Escola de
Música da Rocinha. Melhor escolha, impossível.

Não foi exatamente a intenção da dupla, mas, curiosamente, malabaristas do sinal vermelho é uma expressão que também pode ser lida como uma análise mais divertida do novo governo federal. Ainda há outras leituras. “Entre a produção musical e o público existe o mercado, e existir neste mercado é também ser malabarista”, acrescentou João Bosco a ISTOÉ. A música de abertura é, sem dúvida, de grande impacto. No entanto, há que se seguir saboreando cada faixa. Moral da história – a exemplo de Malabaristas – traz os afamados improvisos vocais de João Bosco. São palavras-sons inventadas por ele, sempre num crescente requinte, que parecem uma nova língua. Em tons sobrepostos, elas introduzem a dramaticidade da canção na qual até as estrelas são melancólicas. Mas o novo CD do compositor que completa 30 anos de carreira não é somente uma reflexão social ou existencial. No quase bolero Eu não sei seu nome inteiro, em que violão, guitarra e piano entram em romance com uma orquestra de cordas, ele canta as gostosas incertezas de uma paixão instantânea, explorando agudos e graves sem nenhuma obviedade.

Em Cinema cidade, guiado pela percussão nervosa de Armando Marçal, desvia o tom épico da música para flertar com o rap da metralhadora verbal de Seu Jorge, amigo de Francisco, trazido para a roda do pai num informal encontro musical. Pernas de pau executa com ótimos resultados o casamento entre o erudito e o maracatu. É quando o cello de Marcio Malard vai, aos poucos, abrindo espaço para a percussão de Armando Marçal e Robertinho Silva, confeitada pela sutil interferência dos teclados de Dudu Trentin. O otimismo como contraponto às faixas de conotação social vem de uma antiga canção de Gilberto Gil, Andar com fé, acelerada pela roupagem inovadora de Bosco. A face lírica surge na melodiosa Não me arrependo de nada, testamento emoldurado de certa tristeza do letrista Francisco, formado em jornalismo, autor de três livros de poemas, atualmente fazendo mestrado em letras, cuja tese fala do processo histórico que levou a literatura brasileira contemporânea a um público tão restrito. Diversidade com estilo, portanto, é o que não falta a Malabaristas do sinal vermelho.

Benzetacil, por exemplo, é tradução de bom humor. Vem de uma experiência traumática de Francisco, que elegeu a picada do antibiótico como a mais dolorida das dores. “Eu tive uma infecção crônica e tomei
a injeção durante seis meses. Não conseguia nem dormir só de pensar
na hora da injeção. Foi horrível”, relembra ele. Acredita-se que, principalmente depois deste CD, Francisco Bosco tenha a sua secretária eletrônica lotada de recados de artistas querendo sua contribuição poética. Já fez duas letras para o novo disco do violonista Guinga,
mas elas custaram um mês de desvio da sua tese. “No trabalho com
meu pai eu participei de toda a concepção do CD. É diferente de
ser letrista a varejo. Além do que a atividade é muito restrita no
Brasil. Meu investimento de verdade é na área acadêmica.” Por
enquanto, então, sorte de João Bosco.


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