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Seis homens estão sendo fichados em uma delegacia. “Seus nomes?”, indaga o policial. “Julien Duvivier”, responde o primeiro detido. “Charles Baudelaire”, afirma o outro. “Salvador Dali”, continua o terceiro. Não, essa cena não se passou em uma delegacia parisiense, nem poderia, já que reúne artistas universais que nem foram contemporâneos. Ela aconteceu em Salvador na década de 1950 e envolveu alguns jovens arruaceiros que andavam praticando atos de protesto em defesa de um saudável esquerdismo juvenil. Muitos deles viriam mais tarde a se destacar na cena cultural brasileira. Duvivier, por exemplo, era o codinome do cineasta Glauber Rocha, morto há 30 anos e lembrado oportunamente com o lançamento do livro “A Primavera do Dragão” (Objetiva), do escritor e compositor Nelson Motta. Trata da juventude do autor de filmes clássicos como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe”. Amigo de Glauber em suas temporadas cariocas, Motta diz que centrou a biografia nos anos de formação do artista porque gostaria de desfazer o retrato de homem briguento e derrotado da fase final. “É o perfil de uma pessoa florescendo”, diz ele.

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"É a versão de Nelson Motta. Nem tudo é verdade"
Helena Ignez, atriz, sobre a sua separação de Glauber Rocha

As histórias que Motta colecionou são inacreditáveis. Flagra o futuro criador do “cinema novo” como um rapaz atirado, disposto a agitar com o lema: “Algo tem que ser feito.” Um jornal publicou um editorial contra Cuba? Ora, algo tem que ser feito. Um general foi eleito governador na Bahia? Melhor executá-lo, tarefa na época para o hoje escritor João Ubaldo Ribeiro, dono de uma espingarda e de boa pontaria (esse atentado ao governador Juracy Magalhães ficou só na mesa de bar, claro). Repórter do “Jornal da Bahia” (começou como crítico aos 15 anos), Glauber é escalado para a editoria de polícia. Como Salvador não era tão violenta como agora, ele exercia a imaginação. “Tudo ia bem até criar um bom crime passional, mas na periferia da cidade. A polícia não gostou da brincadeira, deu-lhe uma compostura”, escreve Motta. O seu poder de convencimento se estendeu à ficção. Nas filmagens de “Deus e o Diabo”, o ator Lídio Silva, que interpretava o beato Sebastião, foi obrigado a se refugiar na casa paroquial de Monte Santo: os figurantes queriam linchá-lo por acharem autênticas as suas profecias agourentas. O impacto chegou a Cannes e de lá o filme conquistaria o mundo, elevando o cineasta ao time dos grandes.

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VANGUARDISTA
Glauber com o uniforme colegial aos 14 anos. Em casa, ele recebia os amigos totalmente pelado
 

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De volta ao Brasil, Glauber é chamado em Brasília para prestar contas de suas declarações contra o recém-instalado regime militar. Junto com o produtor Luiz Carlos Barreto, em vez de entrar na sala do temido Conselho de Segurança Nacional, invadiu o gabinete do presidente Castello Branco. “Vamos pegar esses telefones e começar a dar ordens para os comandantes, semear o caos”, teria dito a Barretão, de olho em dois telefones de cores verde e vermelho. O perfil desse artista sempre em transe não estaria completo se não tocasse em sua vida amorosa, também tumultuada. Ao falar do seu primeiro casamento com a atriz Helena Ignez, Motta mostra como o cineasta ficou devastado com a infidelidade da mulher. Entrevistada por ISTOÉ, Helena disse que essa é “a versão de Nelson Motta” e defendeu-se citando o título de um filme de seu falecido marido, o também cineasta Rogério Sganzerla: “Nem tudo é verdade”. 

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