Conhecida pelos enormes galpões, herança da industrialização do passado, a zona leste de São Paulo nunca chegou a ser um cartão-postal. Ao longo de sua artéria principal, a Radial Leste, por onde chegam a trafegar dez mil veículos por hora, a paisagem se mostra plana e monótona, apesar do vaivém dos trens do metrô e da malha ferroviária de triste aspecto. Quem, no entanto, passar por ali a partir do sábado 16 vai ser surpreendido por imagens no mínimo inusitadas. No alto de um prédio desativado de cinco andares, por exemplo, um painel luminoso de 25 metros com os dizeres “Eu sou Dolores” enfia-se pela janela, deixando para fora apenas a palavra “Eu”. Mais adiante, estacionados ao lado de um pátio ferroviário, vagões antigos desafiam a gravidade, equilibrando-se sobre as rodas traseiras. Parece que o mundo virou de ponta-cabeça? Não. Estas fantásticas intervenções urbanas são, na verdade, obras de arte. Fazem parte da programação do Artecidadezonaleste (assim mesmo, tudo junto), megaevento que distribui por uma área de dez quilômetros quadrados – do centro aos bairros do Pari, Brás, Mooca e Belenzinho – 26 trabalhos de importantes artistas plásticos e arquitetos nacionais e estrangeiros.

O time de primeira inclui nomes como os do celebrado arquiteto holandês Rem Koolhaas, que desenvolveu um projeto para o edifício São Vito, famoso cortiço vertical fincado no Parque D. Pedro II, porta de entrada da zona leste. Koolhaas, autor da revolucionária loja Prada de Nova York, pretendia instalar um elevador de última geração no prédio de 33 andares, destituído dos serviços mais elementares. Chegou a negociar com a matriz da fábrica Schindler, mas as negociações emperraram nos moradores. Ele conseguiu, contudo, abrir o debate em torno daquela área crítica da cidade, que já foi ameaçada de sair do mapa em gestões anteriores da prefeitura.

Orçado em R$ 2,5 milhões, metade coberta por patrocínios, o Artecidade chega à quarta edição exibindo uma feição inédita e ambiciosa. Ao eleger zonas deterioradas e locais ocupados por sem-tetos, camelôs, catadores de papel e outros trabalhadores informais, a maratona de intervenções toca em sérias questões de política urbana e exclusão social, como explica o professor e doutor em filosofia Nelson Brissac, curador do evento. “Nas edições anteriores, tudo ocorria intramuros e em espaços basicamente vazios. Agora, as intervenções ganharam escala urbana e passaram a atuar mais profundamente no funcionamento e na dinâmica da cidade”, afirma ele. É o caso do americano Dennis Adams, diretor do programa visual do Massachussets Institute of Technology (MIT), que concebeu um espaço de convivência no alto de um outdoor da Radial Leste. Com a mesma verve crítica, o polonês radicado nos Estados Unidos Krzystof Wodiczko desenvolveu com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP (IPT) um carrinho para catadores de papel de design superarrojado, trazendo até uma cama embutida. Os protótipos de seus “veículos críticos” serão, obviamente, usados pelo público-alvo.

Quem se aventurar a conhecer todos os trabalhos, distribuídos em dez pontos estratégicos, vai precisar de paciência no volante e de um tanque cheio de gasolina. Um bom começo é visitar o prédio desativado de cinco andares, na verdade a chamada Torre Leste do Sesc Belenzinho, onde vai funcionar a futura sede do Serviço Social do Comércio (Sesc), facilmente acessível pelo metrô. Antiga fábrica da tecelagem Moinho Santista, inaugurada em 1934 e desocupada há 20 anos, a construção abriga quase a metade das intervenções, assinadas por 11 artistas e arquitetos, entre eles Ana Maria Tavares, Ary Perez – também produtor executivo do evento –, Nelson Félix, Waltércio Caldas e Carmela Gross, autora do luminoso extraviado Eu sou Dolores. “Meu trabalho é um elemento urbano que migrou para dentro do edifício”, explica Carmela. “O ‘eu’, esta palavra mínima que diz respeito à subjetividade, é evocada como se fosse um grito.”

Segundo Brissac, ao contrário das intervenções externas, que lidam com tensões urbanas e sociais, na Torre Leste concentram-se trabalhos que questionam a complexidade da estrutura do prédio. A mineira Ana Maria Tavares, por exemplo, criou um emaranhado de passarelase escadas de ferro que interliga diversos andares através de rasgos feitos nas lajes. É um trajeto completamente ilógico,
que obriga o visitante a seguir em frente, sem saber aonde vai chegar e sem a possibilidade de mudar de percurso. A obra mais arrojada, porém, foi pensada pelo carioca Nelson Félix, que atravessou um pilar de sustentação da antiga fábrica com uma viga de ferro de oito metros de comprimento e 40 cm de largura, colocando em risco a própria segurança do local. O resultado, de forte beleza plástica, dá um calafrio em quem vê a coluna cortada pela barra de 600 quilos. “A pessoa é obrigada a tomar consciência do lugar em que está e também dos andares acima”, explica Félix. “A escultura passa a ser o prédio todo.”

É uma das obras que consumiram mais horas de sono da equipe técnica de seis engenheiros, chefiada por Geórgia Cruz Gurjão. Para se cortar o pilar foi necessário abraçá-lo com uma peça metálica especial e transferir sua carga às torres metálicas que escoravam os três andares superiores. “Foram dois meses de estudos e o envolvimento de seis empresas especializadas em corte e perfuração de concreto”, afirma Geórgia. Outro artista responsável pelo aumento dos dígitos das calculadoras é o alemão Hermann Pitz, que montou com 55 mil listas telefônicas uma maquete descontínua de São Paulo, simulando com 140 toneladas de papel a topografia dos bairros do Brás e Santo Amaro e a região da Paulista. Numa visão vertiginosa, conseguiu representar todo o caos da metrópole que o Artecidadezonaleste enfrenta com talento e coragem.