Na madrugada, o telefone toca no apartamento da escritora Lygia Fagundes Telles, no elegante bairro dos Jardins, zona sul de São Paulo. Do outro lado da linha, uma voz sussurrante decreta: “Lyginha, a alma é imortal, nós somos imortais.” De imediato, Lygia reconhece a voz de Hilda Hilst. “Normalmente, ela me pediria para lhe falar algo cintilante, mas nesta noite não”, relembra Lygia, que confessa não ter conseguido mais dormir, excitada com a dose de esperança passada pela amiga de mais de meio século e colega de profissão. Este sentimento voltou a animar Hilda desde que sua obra começou a ser reunida e relançada pela Editora Globo. Ela, que durante décadas involuntariamente carregou a pecha de maldita, agora alimenta o desejo de finalmente ser lida e não apenas comentada. Os primeiros três livros escolhidos acabam
de ser lançados: a novela A obscena senhora D, de 1982; a coletânea
de poesias Júbilo, memória, noviciado da paixão, de 1974; e as poesias satíricas Bufólicas, de 1992. Unidos, serão nove volumes de prosa
e dez de poesia, incluindo mais de 60 livros publicados por várias
editoras pequenas.

A revigorada coleção está sendo organizada por Alcir Pécora, professor de teoria literária da Universidade de Campinas (Unicamp), escolhido
pelo editor Wagner Carelli devido à familiaridade com o universo da autora, que Pécora conhece há 25 anos. Tanto na poesia como na
prosa, Hilda é radical nas experimentações, gráficas, inclusive. É dona
de uma anarquia genérica, pós-moderna, na tradição de Rainer Maria Rilke, T.S. Eliot e James Joyce. Assunto de teses e respeitada na
Europa, onde tem alguns livros publicados, a escritora sempre foi admirada por seus pares e estudiosos, como Pécora. “É importante ressaltar sua referência literária, a prática de uma literatura culta”,
define o professor. Sem dúvida é uma boa análise. Só que, enfadada
com o rótulo, a escritora quis transpor estes limites para se tornar mais popular. Assim, nos anos 90 lançou três livros num estilo que poderia ser definido como pornô chique: O caderno Rosa de LoriLamby e Contos d’escárnio / Textos grotescos (1990) e Cartas de um sedutor (1991), todos, infelizmente, sem sucesso de vendas.

Nascida em Jaú e criada em Santos, Hilda Hilst sempre agiu de modo surpreendente. Em 1966, aos 36 anos e no auge de uma beleza nocauteadora do meio literário e da sociedade da época, ela abandonou
a capital paulista. Mudou-se para a Chácara do Sol – três alqueires de terra próximos à cidade de Campinas, interior de São Paulo –, herdada
de sua mãe, a portuguesa Bedecilda Vaz Cardoso, então proprietária
da Fazenda São José, hoje transformada no luxuoso Parque Residencial Shangrilá. Pois é no terreno da antiga casa da fazenda materna que
a autora vive há mais de três décadas. Para chegar lá, passa-se por
uma guarita com guardas uniformizados e uma estrada de terra que
leva a portões com o aviso escrito numa placa de madeira: Cão anti-social. Na verdade, são 60 cachorros, por sorte guardados nos devidos canis pelo escritor argentino José Luiz Mora Fuentes. Ele e a mulher,
a artista plástica Olga Bilenky, fazem companhia a Hilda, no momento fragilizada por uma isquemia cerebral.

Hippie-chique – O sossego é enorme. A casa espaçosa, de seis quartos e um grande terraço no meio, parece parada no tempo, assim como a paisagem. Ao redor, apenas cinco cachorros, Zidane, Totó, Teco, Dadá e Aninha. As árvores frondosas parecem sussurrar as histórias famosas do lugar, como a mesa quebrada pelo peso pesado Jô Soares, nos anos 60, e os rituais festivos promovidos pela anfitriã. Nos seus tempos áureos, a Chácara do Sol, guardadas as devidas proporções, assemelhava-se à nova-iorquina Factory, do papa do pop Andy Warhol, para onde convergiam os modernos, os especiais, as pessoas da moda. Os móveis hoje lembram um estilo artesanal hippie-chique. Num canto da parede, várias fotos constroem uma espécie de painel afetivo. Quando finalmente surge por trás de uma grande mesa, delicada e trêmula, com passos arrastados, Hilda Hilst, 72 anos em abril, aponta os retratos. “São amigos queridos, todos os dias sinto falta da Lupe (Cotrim, poeta falecida em 1970).”

De brincadeira, Lupe, Lygia e Hilda já foram chamadas de “As três moças do sabonete Araxá”, referência ao poema de Manuel Bandeira, que não foi o único a sucumbir aos encantos de Hilda. Carlos Drummond de Andrade a chamou de “Estrela de Aldebarã” e “Sab(ilda)”. Agora, mesmo apagados pela inexorabilidade do tempo, os traços de beleza ainda se mantêm. As pálpebras inclinadas, como um circunflexo, diminuem os olhos verdes-claros quando ri baixinho, encolhida. Num tom mais de troça do que de desafio ou enfado, como se chamasse o repórter para a briga, pergunta: “E o que mais você quer saber? Será que já não falei tudo?” Seu último livro é Estar sendo. Ter sido, de 1997. Por que parou de escrever? “Por que já disse tudo.” Para ela, escrever é uma finalidade. Formada em direito em 1952, pela Faculdade do Largo São Francisco, nunca advogou, pois já escrevia. Fuentes interrompe: “Ela tem escrito sim.” É um conto ainda inacabado, escrito à mão, chamado O koisa, no qual ela se coloca no lugar de uma azeitona dentro de uma empada. A azeitona filosofa.

Outra questão recorrente é por que ela saiu de São Paulo. Hilda mantém a versão oficial. Teria acontecido após a leitura de Cartas a El Greco,
do escritor grego Nikos Kazantzakis, um presente do amigo e poeta português Carlos Maria de Araújo, morto num acidente de avião em
1962. O protagonista vacila entre o encontro com uma prostituta e
uma viagem. A amiga Lygia conta de outro jeito. “Sua ida para o campo deve-se ao fato de São Paulo ter perdido a beleza. Era limpa, cheia
de confeitarias, leiterias, salões de chá. Hoje, a cidade mostra cansaço, é selvagem, carrancuda e Hilda sentiu nostalgia da natureza, vontade
dos bichos, que para ela é a busca do próprio Deus.” E os propalados contatos com espíritos? “Deixei de praticá-los, pelo custo e pela complicação toda, mas continuo crendo”, confirma Hilda enquanto
traga um dos quase 40 cigarros Chanceller diários. Como prova, exibe
o livro que está lendo, Ponte entre o aqui e o além – teoria e prática
da transcomunicação
, de Hildegard Schaeffer, escritora de Luxemburgo. Trata-se de um fervor admitido por quem já falou várias vezes com
o pai falecido, descrito como um intelectual esquecido numa fazenda
do interior, que se correspondia com Mário de Andrade e acabou internado num manicômio. Com medo de a doença ser hereditária,
Hilda nunca quis ter filhos.

Como toda moça fina de seu tempo, a autora viajou muito para o Exterior. Na eterna Paris, namorou os atores americanos Dean Martin e Marlon Brando. “O primeiro era muito agradável, mas acho que usava dentadura, o outro preferia a companhia de um jovem. Tenho a impressão que era gay”, conta, aos risos. Gostava de Alain Delon, que conheceu no Chile. Lembra que sua beleza era tanta a ponto de afastar as pessoas, mas não ela. A cada novo amor Hilda se inspirava. A obscena senhora D, por exemplo, surgiu depois da morte de seu primo e amante Wilson Hilst. “Morreu baleado pela polícia, por causa de atividades ilegais”, segreda.
O enigma de Júbilo, memória, noviciado da paixão encerra-se nas iniciais do título – Júlio de Mesquita Neto, o falecido dono do jornal O Estado de S. Paulo. Durante 17 anos, contudo, foi casada com o escultor Dante Casarini, de quem é divorciada.

Na prática, porém, as coisas não eram assim tão simples. “Não sei por que sempre tive homens ciumentos”, reclama, com uma pausa para encolher-se e, sorrindo com os olhos oblíquos, completar: “Pensando bem, sei sim.” Adepta do uísque, que consumiu aos hectolitros, hoje resigna-se a uma garrafa diária de vinho do Porto. Jamais, no entanto, bebeu para criar. “Nem mesmo quando escrevi Alcoólicas”, brinca, com certo orgulho. Gostava de beber na solidão, ouvindo música. “De preferência Mahler, minha paixão.” Ou as composições dos eruditos contemporâneos Gilberto Mendes e José Antônio Almeida Prado (seu primo), que musicaram poemas seus. Mas Hilda não inspirou apenas os eruditos. Adoniran Barbosa, o grande cronista musical paulistano, musicou os poemas Quando te achei e Quando tu passas por mim. O maranhense Zeca Baleiro quer homenageá-la com uma canção. Hilda gosta de repetir em tom de blague que não almeja o sucesso. “Só quero ser popular como Zeca Baleiro.” No momento, seu sonho é ver seus livros serem traduzidos para o japonês e o chinês. Nem precisa tanto. Basta os brasileiros (re)descobrirem o grande talento de Hilda Hilst.