O governo George W. Bush abriu outra frente de combate na guerra perene em que mergulhou desde 11 de setembro de 2001. O novo front é a pornografia. O Departamento de Justiça americano requisitou alguns bilhões de dados sobre o comportamento de cidadãos nas empresas de serviço de busca na internet. Quer determinar os padrões de navegação de internautas pela rede. O objetivo explícito desta gigantesca investigação é provar a ubiqüidade dos sites pornôs no ciberespaço. Os provedores de sistemas de busca, como AOL, Yahoo! e Microsoft, se apressaram em atender à demanda, mas o poderoso Google – que domina a área – se recusou e prometeu lutar contra esta intimação, alegando violação da privacidade de seus usuários. O episódio causou revolta, paranóia e confusão num país onde a vida privada dos cidadãos é considerada sagrada. Mas, a exemplo do que ocorre na própria internet, as informações recebidas – por ambos os lados nesta batalha – nem sempre são corretas.

Pegue-se, primeiro, a procura feita pelo governo Bush. O pacote que já recebeu das empresas obedientes consiste de amontoados de dados, tão numerosos e variados, que dificilmente poderão ser avaliados com eficiência pelos analistas do Departamento de Justiça. Lembre-se que, dias antes dos atentados terroristas de 2001, a agência de inteligência CIA interceptou mensagens reveladoras dos ataques, mas, devido ao excesso de trabalho, só conseguiu decifrar as informações dois dias depois da tragédia. A incompetência dos burocratas da arapongagem é fato estabelecido e se revela todos os dias.“Para uma pessoa como eu, que escreve sobre filtros censores de provedores da internet, as buscas utilizando palavras ou expressões como ‘crianças nuas’ ou ‘sexo com menores’ são comuns. Que tipo de interpretação ou suspeitas minhas procuras na rede serão capazes de gerar aos analistas do Departamento de Justiça?” , pergunta a jornalista Louise Backer, especializada em informática.

O motivo alegado pelo governo para esta expedição eletrônica é uma disputa judicial envolvendo legislação aprovada pelo Congresso em 1998, visando proteger crianças na internet. As cortes de Justiça bloquearam a implementação do ato, por entender que seu espírito feria a primeira emenda da Constituição – a de garantia de livre expressão. O Departamento de Justiça apelou da sentença e quer demonstrar, através da análise das buscas dos internautas, como é fácil acessar sites pornográficos, mesmo acidentalmente. “O mais incrível desta pescaria do governo é que uma análise dos dados vai contra seus argumentos. Fica provado que os filtros fornecidos pelas empresas de procura na internet já são suficientes para conter abusos. Basta que os pais das crianças façam uma opção do nível de censura a que cada usuário de sua conta estará submetido. Assim, os adultos podem acessar a rede livre de bloqueios, por exemplo, e os filhos estarão submetidos a censura”, diz Nicole Wong, a advogada do Google. “Nós não somos parte desta ação judicial, e não temos de nos envolver nela. Vamos resistir firmemente à intimação”, diz Nicole.

China – Esta brava resistência, porém, não se estende para além das fronteiras dos Estados Unidos. Por ser descendente de chineses, a advogada Nicole conhece bem a história do Google nas negociações com a China. Os fundadores da companhia, Larry Page e Sergey Brin, não relutaram em aceitar o monitoramento do governo de Pequim aos usuários do serviço naquele país. “E o pior é que o governo chinês controla todos os tipos de pesquisa, sejam elas de assuntos sexuais, sejam econômicos ou políticos, e censura as procuras”, lembra o professor Mike Brandorff, do Departamento de Comunicações da Universidade de Siracuse, em Nova York. Ou seja, a subserviência ao governo da China – que tem a chave para um mercado de mais de um bilhão de pessoas – é aceita, enquanto o Departamento de Justiça americano recebe a recusa. “Do modo como foi noticiada esta ação do Departamento de Justiça, parece que o governo manterá uma lista negra com a identidade de pessoas que procuram pornografia ou atividades de terroristas na internet. Não é nada disso. O que se está requerendo são os ‘dados agregados’ – ou seja: um exemplo do que as pessoas procuraram no intervalo de uma semana. Ninguém pediu a revelação da identidade dos usuários. Não foram pedidos os endereços de IP (uma espécie de RG dos computadores conectados à internet) – que apontam quem procurou aqueles assuntos”, diz a analista de informática e cientista social Christine Waller, funcionária do Departamento de Justiça. Ela lembra também que as empresas do setor privado – de variadas áreas – compram informações dos provedores e de outras empresas de coleta de dados para saber detalhes íntimos da vida dos cidadãos. Desde a compra de roupas íntimas até suas preferências na cama. “E ninguém parece se preocupar com isso”, diz Christine.

É possível, sim, identificar o endereço IP do usuário através do cruzamento de dados pedidos às empresas de procura. E, como o governo Bush já foi apanhado bisbilhotando telefones e e-mails de cidadãos americanos, sem o obrigatório mandado judicial, as desconfianças sobre a vocação a Big Brother da Casa Branca têm fundamento. Na semana passada, a rede NBC de televisão colocou mais lenha na fogueira das paranóias ao divulgar documentos que mostram mais arapongagens ilegais – desta vez do Departamento de Defesa. Através da Cifa – órgão de contra-inteligência ligado ao Pentágono – se faz espionagem de cidadãos americanos. Entre os alvos estão grupos de pacifistas e de opositores do governo Bush. E, ilegalmente, os nomes dos investigados são mantidos em arquivo por mais de 90 dias – o que também é contra as leis do país. Ou seja, como diz o velho ditado: os paranóicos também têm inimigos.